Esse post foi publicado 30 de maio de 2018 às 17:56 e está arquivado em Textos. Você pode acompanhar quaisquer respostas a esta entrada através do RSS 2.0 feed. Você pode deixar uma resposta, ou trackback de seu próprio site.
Construindo o caos
Arnaldo Mourthé
A mídia e o governo se esforçam em nos convencer que a crise de abastecimento que estrangula o Brasil é uma questão setorial da nossa economia, que se manifesta através de um movimento de paralisação das atividades dos transportadores de carga. Essa é uma simplificação que não resiste à mais rudimentar das análises. A grande maioria da população percebe isso. Sua conclusão em geral é que a crise decorre da irresponsabilidade que impera no governo, além de ressaltar aspectos comportamentais como a corrupção de seus membros. Mas a questão é muito mais extensa e profunda. Há, nitidamente, a esgarçadura do tecido da sociedade pelo agravamento dos conflitos sociais. Esse fenômeno ocorreu em várias fases da história da humanidade, produzindo mudanças profundas nas coletividades e nas civilizações.
Essa minha visão se reforça com o próprio discurso dos governantes e da mídia mercenária. Eles ressaltam os “prejuízos” econômicos provocados pela paralisação. Fazem um grande alarde sobre a mortandade de aves os seus criatórios, onde são criadas em condições que horrorizam os naturalistas. Elas são confinadas aos milhares, umas junto às outras, como em baladas de jovens. Só que por toda a curta vida, até terem o peso necessário para o abate rentável, para serem vendidas para o exterior, trazendo lucros para eles e dólares para serem exportados como lucros dos investimentos estrangeiros na produção de mercadorias questionáveis e na especulação, que inclui os juros da dívida pública, a sangria que está levando o Brasil ao caos.
Não são os caminhoneiros os responsáveis pelo caos. Ele vem sendo construído há muito tempo por uma elite calhorda, com cultura escravista, e pelo capital financeiro predador e vampiro das nossas riquezas naturais ou produzidas por nosso trabalho, inclusive dos próprios caminhoneiros responsáveis pela circulação da maior parte de nossas riquezas através do território nacional, para o consumo interno ou a exportação que nos escraviza.
No seu discurso os homens do poder lamentam a morte de pintinhos, não pela vida deles, que apenas foi antecipada em 45 dias do seu abate, com sua cabeça cortada. Mas, em nenhum momento consideram o sofrimento do nosso povo, sua morte precoce por desnutrição, descaso do poder público ou pela violência gerada pela sociedade perversa que eles criaram e cultivam
Vivemos hoje, no Brasil, um quadro de tensão social que ultrapassa todas as outras registradas na nossa história. É muito maior que a do fim do sistema escravista, da proclamação da República ou da Revolução de 30. Ela não representa apenas uma mudança nas relações de poder entre classes sociais. É muito mais do que isso. Daí a perplexidade dos analistas, que não encontram instrumental teórico para compreendê-la, nem classificá-la nos conceitos restritos conhecidos por eles.
Venho, há muito tempo, tentando compreender os fenômenos novos que vêm ocorrendo na nossa sociedade. Fui buscar na história, e nos ensinamentos dos mestres do passado, explicações para questões que ultrapassam os pensamentos dominantes na sociedade que são, no campo político, representado pelas ideologias. Desse esforço de pesquisa resultaram três livros de minha autoria: História e colapso da civilização (2012), A crise (2016), O poder no Brasil e A perplexidade (2017), todos pela Editora Mourthé. Eles tratam respectivamente da história da humanidade, da economia, do poder e das instituições e, finalmente do pensamento e do comportamento humano incluindo questões da espiritualidade. Esses livros espelham o meu pensamento sobre as questões da evolução da humanidade, com seus altos e baixos, no mundo da dualidade. Não cabe em um artigo tratar dessa questão.
Essa introdução me permite avançar a análise que faço do fenômeno que ocorre agora no Brasil sob a forma de crise múltipla, econômica, moral e institucional, mas que atinge também todo o Planeta, nas mais variadas formas e intensidades, em função da cultura de cada povo e de seu desenvolvimento tecnológico.
Minha conclusão é que estamos vivendo um momento de ruptura da sociedade, que ultrapassa tudo que a história da humanidade registra. Isso ocorre pelo salto de consciência do ser humano, que passa a ter uma visão do mundo mais ampla do que aquela regida pelas leis da dualidade que a dialética estudou, permitindo a compreensão da evolução da sociedade pela contradição dos contrários, ou seja, dos interesses opostos nas relações entre as pessoas, classes sociais ou comunidades, inclusive entre as nações.
É por isso que as classes dominantes já vêm, há algum tempo, se afastando do diálogo para resolver as pendências com o restante da população pelo equilíbrio, mesmo precário, dentro da sociedade. É por isso que o apelo pelas guerras se esgota nas relações entre as nações. Não há mais campo de manobra para a convivência desigual entre pessoas, classes sociais e nações. A consciência coletiva da humanidade tende a se opor às condições da dualidade. Não há mais espaço para discutir se é melhor a liberdade ou a igualdade. As duas condições são direitos inatos do ser humano, que passa a ter essa compreensão. A sociedade das disputas, da competição pela posse de bens ou de regalias, cede lugar à sociedade da fraternidade, da solidariedade, da cooperação, entre pessoas, grupos sociais e nações. Esse é o novo mundo que os grandes pensadores anteriores à nossa Era pregavam como o mundo real, da verdade, em contraposição ao mundo da ilusão criado pela mentira. Esse fenômeno pode ser sentido no descrédito das autoridades públicas prepotentes e dos meios de divulgação que escondem a verdade e difundem a ilusão.
De nada adianta o esperneio dos governantes, dos marqueteiros da ilusão e dos homens do poder que tudo buscam controlar a partir do dinheiro, contra as reivindicações legítimas dos cidadãos. Estes são movidos, a cada dia com mais vigor, pela consciência de seus direitos e deveres, e de suas necessidades. Todo o aparato ideológico, midiático ou repressivo torna-se ineficaz diante da consciência expandida do ser humano.
Dito isso, o que nos resta é agir no campo de nossas responsabilidades individuais e sociais, e esperar que esse crescimento da consciência coletiva produza a demolição das estruturas arcaicas, que não mais servem ao ser humano, com a limpeza do terreno para a construção de uma nova sociedade que corresponda às novas condições de nossa consciência coletiva.
De nada adianta o esperneio dos que detêm e se beneficiam do poder em detrimento da dignidade do ser humano. As condições que permitiam o homem cruel e tirânico ter seu lugar de destaque na história estão se dissolvendo. O fim da prepotência e da mentira já está decretado. Surgirá uma nova sociedade de Paz e Fraternidade.
No mundo da dualidade só sobreviveu aquele que interessava aos que tudo dominavam e os que se negavam a submeter-se, seja por seu recolhimento na obscuridade, seja utilizando a dialética para combater os opressores. Mas a dualidade engana muito, até àqueles que se consideram sábios, como bem compreendeu Sócrates. No confronto dos contrários há a possibilidade do avanço ou do retrocesso. Este aconteceu sob a égide do neoliberalismo. A humanidade que se afundou no abismo não está mais obrigada a viver o dualismo que favorece o mais forte. Isso é possível pelo despertar da sua consciência. Vivemos esse momento crítico. Nele os conceitos anteriores não funcionam. O homem está assumindo seu destino libertário. Isso já era previsto pelos grandes pensadores da antiguidade. Nós ainda precisamos da dialética para derrotar o opressor, mas sem as amarras da luta de classes. A questão deixou de ser escolher entre liberdade ou igualdade. Mas conquistar as duas condições. E para tal é preciso que assumamos outra condição, a fraternidade.
Chegou a hora de nos organizarmos sob essas três condições que os iluministas não criaram, mas nos revelaram. Portanto, chegou a hora também de revermos nossos pensamentos estreitos. Isso é difícil para o acadêmico, enquadrado por uma superestrutura autossuficiente e restrita. Chegou a hora da grande reflexão, a hora da verdade.
Rio de Janeiro, 30/5/2018.
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