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Ditadura III, reprimir para gerar reação e justificar o golpe
Arnaldo Mourthé
Vimos que a ditadura não passou no teste da política econômica e na sua prática social. Mas sua ação política foi mais desastrosa ainda. Ela criou uma ruptura na nossa história, cerceando a liberdade e bloqueando o processo de formação da nossa consciência de nacionalidade. O período anterior à ditadura foi demonizado, pintado com as cores preconceituosas da ideologia engendrada para justificar a guerra fria. A repressão foi o instrumento mais usado para alcançar seus objetivos, quando não faltaram, a coação, a violência desnecessária, a tortura, a chantagem e o assassinato político. Nós vimos que a repressão dos primeiros dias da ditadura fora desproporcional à resistência ao novo regime. A população não estava satisfeita, mas os militares obtiveram um confortável apoio das camadas mais ricas da sociedade, e dos partidos que representavam os interesses dos empresários e dos proprietários de terras. A Igreja, através de seus setores mais reacionários, havia apoiado o golpe, na sua visão mesquinha do combate ao comunismo satanizado. Esses setores da sociedade levaram consigo parte significativa das classes médias no apoio à ditadura, que a imprensa alardeava ser uma revolução redentora.
As ações contra a ditadura, nos seus primeiros anos, foram praticadas por setores mais radicais da juventude e por militares punidos e perseguidos. Apesar de algumas ações armadas, esses grupos não ofereciam perigo para o poder. A mais importante dessas ações talvez tenha sido a do capitão Carlos Lamarca, ao retirar do quartel onde servia um caminhão de armas leves. Os revoltosos não tinham poder de fogo para enfrentar as forças armadas e não conseguiram o apoio necessário da população para ações mais eficazes. O crescimento da economia estava levando grande parte da classe média que se opôs ao golpe de Estado a acomodar-se, por seus bons salários e para evitar complicações com inimigo tão poderoso. Isso reduziu o espaço dos grupos de resistência nas cidades, o que os levou a agir a partir do campo. Entretanto, grupos poderosos dos quartéis e do governo viam, ou fingiam ver, inimigos por toda parte. Afinal, era preciso justificar tão brutal repressão.
Em março de 1968, militares radicais invadiram o restaurante estudantil do Calabouço para reprimir uma manifestação contra o aumento das refeições. O aspirante Aloísio Raposo, que comandava a tropa, disparou sua arma à queima-roupa contra o estudante Edson Luís de Lima Souto, de 17 anos, matando-o. No dia 2 de abril foi celebrada a missa de 7° dia em intenção a Edson Luís, na Candelária. A cavalaria da polícia investiu contra os que saíam da igreja, estudantes, populares, padres e jornalistas. Os movimentos de protesto se espalharam, tendo Edson Luís como bandeira. Numa assembleia estudantil na UFRJ foram presos 300 estudantes. A revolta ampliou-se. Para tentar contê-la as autoridades permitiram uma manifestação de estudantes na Cinelândia. Foram às ruas dezenas de milhares de pessoas, representando os setores mais dinâmicos da sociedade, estudantes, intelectuais, artistas, políticos. O ato de protesto ficou conhecido como a Marcha dos Cem Mil. A palavra de ordem abaixo a ditadura ecoou pelo centro do Rio e repercutiu por todo o país.
O ano de 1968 foi pródigo em manifestações em várias nações do mundo. Nos Estados Unidos Martin Luther King foi assassinado e grandes multidões se reuniram para protestar contra a guerra do Vietnã. Na França, manifestações estudantis multiplicaram-se contra a política repressiva do governo. A Universidade de Nanterre foi fechada depois de grandes conflitos entre estudantes e policiais. Elas ocorreram também na Espanha, Polônia, Bélgica, Itália, Alemanha ocidental. Na América Latina houve agitações no Uruguai, Argentina, Venezuela, México e Colômbia. Era um sinal do fim do Estado de Bem-Estar Social, e do agravamento da guerra fria. A euforia do pós-guerra dava lugar a uma dura luta pelo domínio econômico do mundo e de concorrência entre países, que se desdobraria no projeto neoliberal de dominação do mundo pelo capital financeiro internacional.
No Brasil, o Congresso foi contaminado pela agitação social. Pronunciamentos dos deputados Maurílio Ferreira Lima, Márcio Moreira Alves e Hermano Alves irritaram sobremodo os militares. Em 13 de dezembro de 1968, foi editado o Ato Institucional nº 5, que decretou a recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores. Os três deputados citados foram cassados imediatamente e a eles se seguiram mais de uma centena de outros deputados federais e ainda maior número de deputados estaduais e vereadores em diversos estados da Federação.
O AI-5 foi a ruptura dos militares com a sociedade civil. A partir daí a repressão seria muito mais dura, assim como a resistência da população contra a ditadura. A frente política, representada pelos parlamentares, envolvia um grande leque da sociedade. A ditadura que se dizia defensora da democracia e da liberdade havia deixado cair sua última máscara com o fechamento das casas legislativas. Os grupos de resistência clandestina à ditadura, impiedosamente reprimidos pela simples razão de negarem sua legitimidade e pedirem a restauração do regime democrático e de direitos sociais, foram colocados diante de um impasse. Acomodar-se a uma clandestinidade passiva ou reagir. Alguns, os mais jovens e mais radicais, optaram pela ação de guerrilha, alguns no campo, outros na cidade. Eles eram formados na sua grande maioria por estudantes, funcionários e operários, com seu natural vigor e destemor juvenil.
A gênese desses movimentos de ação armada está magistralmente relatada no livro Uma tempestade como a sua memória, a história de Maria do Carmo Brito, contada por ela mesma e pela escritora Martha Vianna (120). O livro é uma epopeia sobre os jovens colocados diante da iniquidade e submetidos aos mais brutais constrangimentos. Seus dramas, suas dúvidas, seu sentimento de responsabilidade social, sua dignidade, os levam a reagir, da forma que lhes foi possível, buscando a superação para salvar os princípios e defender os direitos nos quais acreditam. Do grupo de Maria do Carmo foram mortos seu marido, Juarez Brito, Carlos Alberto Soares e muitos outros. Os relatos recentes, publicados sobre as torturas e a tentativa de assassinato de Inês Etienne Romeu, que denunciou o médico Amílcar Lobo e a Casa da Morte de Petrópolis, mantida pela repressão militar, onde teria sido morto Carlos Alberto Soares (Beto), mostram o lado macabro da ditadura (19). Carlos Alberto mereceu uma menção especial da presidente Dilma Rousseff no seu discurso de posse.
Além do aumento da resistência política, os grupos de ação armada tornaram-se audaciosos e praticaram atos de ampla repercussão. As guerrilhas, do vale da Ribeira, em São Paulo, e do Araguaia, são exemplos dessas ações no campo. Nas cidades os atos de maior repercussão foram os sequestros de embaixadores. Do americano, em setembro de 1969, do alemão, em junho de 1970, e do suíço, entre dezembro de 1970 e janeiro de 1971. Os sequestros dos embaixadores tiveram um duplo objetivo para seus autores: liberar seus companheiros presos e divulgar a resistência interna no Brasil à ditadura. Eu assisti ao desembarque, em Argel, dos 40 presos políticos libertados em troca do embaixador alemão. Apenas as autoridades argelinas, das Nações Unidas, diplomatas brasileiros e imprensa, tiveram acesso a eles no aeroporto. A mídia internacional estava representada ali através de dezenas de enviados. Os franceses, especialmente, tinham um objetivo bem definido, seu herói da Resistência contra a ocupação nazista, Apolônio de Carvalho, elevado ao posto de coronel do Exército francês. No dia seguinte, grande parte do mundo podia conhecer a outra face do governo brasileiro de então, uma ditadura sanguinária.
Cumprido o protocolo de exames médicos e assistência psicológica, pudemos visitar os ex-prisioneiros. Eu tinha um objetivo especial, saudar minha amiga Maria do Carmo Brito. Na oportunidade conheci muitos deles. Alguns vieram a ser amigos diletos, como o capitão Altair Luchesi Campos, Fernando Gabeira, Apolônio de Carvalho e Ângelo Pezzuti. Este perderia a vida em um acidente de moto em Paris. Muitos daquele grupo viriam a ser figuras proeminentes da política e do jornalismo no Brasil, por méritos próprios e ajudados pela grande projeção internacional que tiveram a partir daquele evento. A luta armada não prosperou, nem foi decisiva no desenvolvimento do processo, mas mostrou para o mundo a natureza repressiva da ditadura e seu desgaste junto à população brasileira. A repressão tornou-se mais cruel e mais sanguinária, demonstrando a incapacidade política para buscar o diálogo com a sociedade civil e para dirigir o país. A partir do AI-5, o Brasil ainda viveria uma década de impasses e de agravamento do conflito político interno, até que o desgaste irremediável do governo e o medo de uma revanche levaram os militares mais lúcidos a buscar o caminho da anistia.
O AI-5, além de incentivar a ação de grupos armados, também ampliou a denúncia dos desmandos e da violência da ditadura. O jornalista e deputado cassado Márcio Moreira Alves foi para o Chile. Lá ele criou um boletim de notícias sobre o Brasil com o nome de Frente Brasileira de Informação. Necessitando ir para a França, país de sua esposa, ele teve a colaboração de Miguel Arraes para manter a edição do boletim a partir de Argel. Com o nome francês Front Brésilien d’Information, essa publicação ganhou corpo e era enviada regularmente a mais de novecentas personalidades formadoras de opinião de países da Europa, das Américas e de outros continentes. Ela ganhou credibilidade pela seriedade e qualidade das matérias publicadas, e passou a incomodar o governo brasileiro. Muitas de suas matérias foram publicadas em vários jornais de diversos países, com destaque para o jornal Le Monde, de Paris. O governo militar dizia haver um grupo de exilados denegrindo a imagem do Brasil no exterior. Entretanto, a questão era outra. Para a imprensa e políticos da Europa, os exilados representavam melhor o Brasil que seu governo ditatorial. A queda de braço da ditadura com a sociedade civil abrira diversas frentes de luta que minariam as forças do governo militar.
Rio de Janeiro, 21/12/2016.
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