Os novos barões do café (XVI) – Jango assume o poder acuado


Jango assume o poder acuado

Arnaldo Mourthé

 

No período parlamentarista, Jango ficou restrito às atividades protocolares e à solução de crises políticas. As contradições de interesses imobilizavam o Parlamento. Nada do que havia sido prometido em campanha eleitoral poderia ser discutido. Tudo que viesse de Jango era, em princípio, contra a democracia. Até o cumprimento do acordo político de submeter a mudança de regime a um plebiscito. Os golpistas tinham largo apoio da mídia, através dos anunciantes.

Mas a paralisia geral do governo face aos problemas sociais que se agravavam convencera o Congresso a votar, no dia 15 de setembro de 1962, o projeto de Lei complementar de autoria de Juscelino Kubitschek, de Benedito Valadares e do deputado Gustavo Capanema, que autorizava a realização do plebiscito em 6 de janeiro de 1963. Nesse dia, os 18 milhões de eleitores brasileiros de então foram chamados às urnas. Votaram pelo presidencialismo 9.475.488 eleitores, e apenas 2.073.582 a favor da manutenção do parlamentarismo.

Era de se esperar que, enfim, a estabilidade política voltasse ao país. Entretanto, os que se proclamavam arautos da democracia só fizeram intensificar os ataques a Jango, ao seu governo e aos seus aliados. As tensões cresceram em todo o país, inclusive nas forças armadas. Muitos subordinados se rebelavam contra seus comandos golpistas. Praticamente todas as forças políticas se posicionavam em defesa de seus projetos, como deve ser em uma saudável democracia. Mas uma corrente reacionária e entreguista, que defendia os interesses do capital estrangeiro, lançou-se às mais sórdidas campanhas e à conspiração contra o governo. Houve uma ofensiva contínua da oposição até o desfecho do golpe de Estado, entre 31 de março e 1° de abril de 1964.

Darcy Ribeiro, idealizador e primeiro reitor da Universidade de Brasília, depois ministro-chefe de gabinete da Presidência no governo João Goulart, testemunhou o que aconteceu no Brasil naquele período. Vejamos alguns tópicos do seu depoimento sobre o golpe de Estado de 1964. Referindo-se à reforma agrária, proposta na Mensagem Presidencial de 15 de março de 1964, ele escreveu:

Dois Brasis se defrontavam ali. Numa vertente, estava o Brasil das Reformas de Base, empenhado em abrir perspectiva para uma nova era, fundada numa prosperidade oriunda da ativação da economia rural e da mobilização da economia urbana, ampliada através das outras reformas em marcha: a urbana, a fiscal, a educacional e a administrativa. Na vertente oposta, estava o Brasil da reação, em união sagrada para a conspiração e o golpe, sem qualquer escrúpulo, a fim de manter a velha ordem […]

O golpe militar teve como finalidade, basicamente, impedir aquelas reformas. Para isso é que mobilizou os latifundiários, em razão dos seus interesses; e os políticos da UDN e do PSD, que vinham minguando ano a ano. Apesar de poderosas, essas forças nativas não podiam, por si mesmas, derrubar o governo. Apelaram, então, para o capital estrangeiro e seu defensor no mundo, que é o governo norte-americano, entregue à estratégia da guerra fria. Os conspiradores de 1964 não só aceitaram, mas solicitaram a intervenção estrangeira no Brasil, rompendo nossa tradição histórica de defesa ciosa da autonomia e de repulsa a qualquer ingerência em nossa autodeterminação […]

Jango não caiu por ocasionais defeitos de seu governo. Foi derrubado em razão de suas altas qualidades, como o responsável pelo maior esforço que se fez entre nós para passar o Brasil a limpo, criando aqui uma sociedade mais livre e mais justa (98).

 

Um dos livros mais importantes sobre esse período foi O golpe começou em Washington, de autoria do jornalista Edmar Morel, escrito ainda no calor da refrega. Morel destaca no seu livro cinco frentes de reação contra Jango. A primeira delas a Reforma Agrária, ou mais especificamente a substituição da prévia indenização em dinheiro por títulos da dívida pública.

A segunda, o impasse do valor da indenização a ser pago pelo Tesouro Nacional às empresas Bond and Share, American Foreign Power e a CTB, por seus acervos ligados às concessões de fornecimento de energia elétrica e de telefonia. Eles reivindicavam 188 milhões de dólares, enquanto a comissão técnica brasileira dera um parecer que a indenização máxima não podia passar de 57 milhões, considerando o estado degradado dos equipamentos, que precisavam ser imediatamente substituídos.

A terceira foi o relatório de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que constatou remessa clandestina para fora do país de royalties da indústria farmacêutica estrangeira, no valor de 10 milhões de dólares. A denúncia chocou a opinião pública e gerou pedidos ao governo para nacionalizar essas indústrias.

A quarta foi uma decisão da Justiça, que tornou sem validade a concessão de exploração de minério de ferro transferida à Hanna, um megaconglomerado de diversas empresas americanas e internacionais, com grande poder junto ao governo dos Estados Unidos. Essa concessão foi obtida através de compra feita em Londres da São João del Rey Mining, em 1956. Analisando o processo, o ministro de Minas e Energia Gabriel Passos, político mineiro filiado à UDN, de grande prestígio por sua integridade moral, patriotismo e competência técnica, houve por bem anular a concessão por nociva aos interesses nacionais. A Hanna impetrou um mandado de segurança junto ao Tribunal Federal de Recursos, que o denegou.

Segundo Morel, a Hanna, com seu poder financeiro e político, teria reforçado o caixa do Ibad – Instituto Brasileiro de Ação Democrática, ponta de lança dos lobistas das empresas americanas no Brasil. Morel escreve:

 

Com a derrota da Hanna, o consórcio ianque, comandado por Mr. John Foster Dulles Júnior, filho do antigo Secretário de Estado norte-americano, passou a financiar o IBAD, órgão que corrompeu os últimos pleitos eleitorais, elegendo deputados antinacionalistas, tipos escolhidos a dedo para qualquer negócio de interesse comercial americano. A corrupção foi da ordem de cinco bilhões de cruzeiros (79).

 

Morel cita uma lista de quinze empresas norte-americanas e europeias que sustentavam a atividade do Ibad, famigerada entidade que manteve durante anos os conspiradores golpistas e os detratores das autoridades brasileiras que defendiam o interesse nacional em face da ganância de empresas dilapidadoras da nossa economia.

Como quinta frente de reação contra Jango, ele cita uma passagem do comício de 13 de março de 1964, referindo-se ao presidente:

 

Ao revelar que iria remeter mensagem ao Congresso pedindo o voto para o analfabeto e elegibilidade dos soldados, abria um abismo entre o poder e os partidos, particularmente a UDN e o PSD.

Naquele comício, o Sr. João Goulart, ao descer do palanque, estava com a sua sorte selada, irremediavelmente perdido. O episódio dos marinheiros e sargentos foi o tiro de misericórdia (79).

 

Pelo que foi dito por Morel, podemos concluir que Jango não cometeu qualquer ato de subversão, ou atentado contra o que quer que seja. Ele propôs uma reforma agrária, diga-se de passagem, moderada; defendeu os interesses nacionais contra dilapidadores irresponsáveis, vezeiros nas práticas criminosas contra o país; e tentou ampliar a cidadania, concedendo voto aos analfabetos e aos soldados. Apenas conquistas democráticas dos cidadãos que vigoravam em muitos países. Uma leitura sucinta das principais passagens do famoso comício de Jango da Central do Brasil prova isso.

Rio de Janeiro, 20/12/2016.

 

 

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