Esse post foi publicado 06 de dezembro de 2016 às 13:39 e está arquivado em Textos. Você pode acompanhar quaisquer respostas a esta entrada através do RSS 2.0 feed. Você pode deixar uma resposta, ou trackback de seu próprio site.
A subversão da República
Arnaldo Mourthé
Estamos, no Brasil, vivendo uma calamidade política, moral e institucional, que parece o “fim dos tempos”, ou o Apocalipse de São João evangelista. Algo que jamais foi visto na nossa história. Em nome da Soberania dos poderes, como reza os princípios da República, deputados, senadores e os presidentes das duas casas, buscam justificar à aberração da reação dos deputados, às ações dos organismos do Estado, Ministério Público, Judiciário e Polícia Federal, para combater a corrupção, alegando a soberania do Poder Legislativo.
Mas o que vem a ser essa Soberania? Ela não é outra coisa senão a delegação de poder que o cidadão concede a seu representante no poder do Estado para tomar decisões em nome da população do país a que ela se refere, para defender a sua vontade geral, aquilo que representa o interesse coletivo, independentemente das diferenças ou divergências que existam no seio da comunidade organizada em Estado. Rousseau definiu muito bem o conceito de República, quando ele disse:
“Contemplo os homens chegados ao ponto em que os obstáculos danificadores de sua conservação no estado natural superam, resistindo, as forças que o indivíduo pode empregar, para nele se manter; o primitivo estado cessa então de poder existir, e o gênero humano, se não mudasse de vida, certamente pereceria.”
“Como os homens não podem criar novas forças, mas só unir e dirigir as que já existem, o meio que têm para se conservar é formar por agregação uma soma de forças que vença a resistência com um só móvel: pô-las em ação e fazê-las obrar em harmonia.”
Segundo ele, para isso era preciso “Achar uma forma de sociedade que defenda e proteja com toda força comum as pessoas e os bens de cada sócio, e pela qual, unindo-se cada um a todos não obedeça senão a si mesmo e fique tão livre quanto antes… e esse é o problema fundamental que resolve o Contrato Social.”
A formulação de Rousseau refere-se a princípios de uma República ideal que a humanidade ainda não conseguiu alcançar plenamente. Mas nós temos uma República real. Ela funciona precariamente porque as forças hegemónicas da sociedade a utilizam para seus próprios interesses em detrimento do conjunto da população. Mas, de qualquer forma, os princípios republicanos são defendidos por um Contrato Social, que no caso é a Constituição, que não é igualitária, mas é aquilo que as condições objetivas da sociedade podem oferecer de melhor aos seus membros. E para que a Constituição seja defendida, existe a divisão de poderes. O Executivo pratica as ações concretas, o Legislativo faz as leis que devem ser obedecidas pela sociedade e pelo Executivo, que também tem a prerrogativa de vetá-las, sob condições, e o Judiciário, que julga sobre a legalidade dos atos de todos e que é o Guardião da Constituição.
Com a queda da ditadura militar e sob um forte movimento popular pela democracia, foi promulgada uma Constituição que deveria satisfazer as necessidades da Nação por um longo período. Mas ela foi maculada por emendas de interesse do poder econômico e das oligarquias políticas. Nesse processo de reformas foi utilizada a corrupção de deputados para obter votos para as reformas dos mandatários a serviço do capital financeiro. Assim foram tomadas medidas para centralizar a administração financeira do país no Executivo federal. Quebrou-se assim o sistema federativo, tornando os Estados devedores da União, enquanto esta se endividava de forma escandalosa, através da emissão de títulos, atividade nefasta mas fora do alcance da Lei de Responsabilidade Fiscal . Além disso, manietou governadores e prefeitos, todos eles reféns de repasses do governo federal.
Disso tudo resultou uma série de medidas nefastas para o país. Promoveu-se a redução do Estado, com as privatizações e concessões de serviços públicos, e redução da presença do Estado na educação e na saúde pública. Foram estabelecidos procedimentos para subsidiar particulares em atividades do Estado, através das ONGs, organizações não governamentais.
O exemplo da corrupção de deputados para essas reformas foi repetido mais tarde numa operação conhecida como Mensalão, comprovada e punida pelo Supremo Tribunal Federal. Mas não ficou somente nela. A corrupção tornou-se sistemática e institucional, na medida em que envolveu grande parte do Executivo e do Legislativo federal, e alastrou-se pelos Estados, que hoje está sendo desvendada pela Operação Lava Jato e muitas outras de iniciativa do Ministério Público e apoiada pelo Judiciário e pela Polícia Federal. As revelações dessas operações mostram o comprometimento de muitos altos mandatários, executivos e parlamentares, revelando um poder corrompido que sangra o país.
Mas tudo isso é relativamente pouco quando olhamos para as despesas orçamentárias da União e encontramos, em 2015, uma percentagem de mais de 45% do orçamento utilizada no pagamento dos juros da divida pública. Apesar disso foi necessário emitir mais títulos porque esse valor era menor do que os 420 bilhões de reais relativos aos juros do ano. Essa é a fonte principal de toda a crise financeira que atinge União, estados e municípios, fazendo esfacelar o serviço público e criando uma situação de caos no país.
O fato mais desconcertante para os mandatários, corruptos ou não, é que se não houver a suspensão do pagamento dos juros da dívida pública a União irá ao colapso. Fruto de desmandos ao longo das décadas, mas, sobretudo, das duas últimas quando foram abertas as fronteiras do país ao capital financeiro internacional, e montada uma parafernália de leis de proteção ao capital, que inclui financiamentos públicos deficitários, cujos juros são inferiores aos pagos pela União, e subsídios absurdos, como os concedidos à indústria automobilista. Tentar cobrir essa cratera com redução de serviços e do arrocho do funcionalismo é ridículo.
Se não houver um governo capaz de suspender o pagamento dos juros da dívida pública – até que seja feita a auditagem das suas origens e das manipulações financeiras e contábeis que nos levaram a essa situação deprimente – não teremos condições de enfrentar a crise econômica, que é internacional, mas que os nossos últimos governo fizeram dela uma tragédia nacional. O país e a sociedade brasileira estão se esfacelando enquanto um grupo de corruptos, para salvar a própria pele, decide legislar em causa própria, castrando o Judiciário e as instituições que lhe permitem exercer seu papel de guardião da Constituição e do Estado de Direito.
Voltamos a Rousseau para dizer: ”A coisa mais perigosa que há é a influência dos interesses privados nos negócios públicos, e é menor mal o abuso de leis pelo governo que a corrupção do legislativo, resultado infalível de alvos particulares”. Imagine só quando a corrupção alcança os dois poderes, como é nosso caso.
É evidente que é preciso deter a sangria dos recursos orçamentários para sairmos da crise financeira e enfrentarmos a crise econômica e outras mazelas da sociedade. Como não temos governo para isso, seria bom se houvesse outra operação de combate à corrupção que poderia chamar-se Operação Bancarrota. Esta poderia desvendar as fraudes contábeis que geraram as dívidas, o seu crescimento fabricado com juros sobre juros – estes exorbitantes e fabricados pelos próprios banqueiros encastelados no COPOM – numa equação exponencial com tendência de crescimento até o infinito. Diante do rombo que será encontrado, a corrupção apurada pela operação Lava Jato, vai parecer coisa de pivete. Mas o Brasil voltará a ser soberano e o povo mais feliz.
O povo na rua é nossa esperança de não nos tornarmos de novo uma colônia.
Rio de Janeiro, 3/12/2016
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