Vamos construir nosso futuro III


Na Inglaterra nasce o poder burguês

Arnaldo Mourthé

            O modo de produção capitalista nasce da falência do sistema feudal. Neste, o camponês era dependente do senhorio, mesmo quando explorava a terra comunal que também estava sob proteção do senhor feudal. O camponês era assim vinculado à terra que trabalhava. Era o servo de gleba. Sua liberdade era restrita, condicionada por esse vínculo e pelas obrigações que ele acarretava. Já os artesãos, além de trabalhadores autônomos, eram vinculados às suas guildas, das quais recebiam proteção e solidariedade. Em um sistema feudal forte, não havia lugar para o trabalhador totalmente livre, que pudesse colocar sua força de trabalho à venda, aspecto essencial à condição de trabalhador assalariado. Nem nas cidades-Estado os trabalhadores eram totalmente livres. Ou eram servos ou aprendizes dos artesãos.

A deterioração do sistema feudal, que começa com o fortalecimento do poder dos reis, levou a pequena nobreza à decadência. Suas terras passaram paulatinamente para as mãos de burgueses ricos sob a forma de arrendamento. Os arrendatários utilizaram o trabalhador assalariado, mas de forma esporádica ou a tempo parcial, já que este explorava as terras comunais da aldeia que habitava, ou possuía um lote de terra que ocupava parte do seu tempo. Para que fosse realmente livre e pudesse vender sua força de trabalho, o trabalhador teria de ser desvinculado da terra. É importante observar que o sistema feudal em toda a Europa caracterizou-se pela divisão das terras entre o maior número possível de pessoas, para aumentar a produção e a renda do senhorio.

No século XIII, esses trabalhadores assalariados temporários do campo não eram de todo livres. Eles eram ainda vinculados à comunidade através das terras comunais e dos lotes de terra que exploravam pessoalmente. Assim, o processo de formação do capitalismo, que começou no campo com os arrendatários de terras, levou quase dois séculos. Foi o tempo necessário para que os camponeses se tornassem livres. Não apenas do senhor feudal, mas também dos seus compromissos comunais e com sua pequena propriedade. Esse processo se deu paulatinamente com a falência pessoal do senhor feudal e, mais tarde, generalizou-se pela falência do próprio sistema. Esse foi um período de duras lutas e de muito sofrimento para os trabalhadores.

Esse processo iniciou-se no norte da Itália, mas foi na Inglaterra que ele ganhou grandes proporções. Isso se deu pela falência dos senhores feudais que se empenharam nas Cruzadas criadas pelo papado. O rei Ricardo Coração de Leão participou da terceira cruzada, organizada pelo papa Gregório VIII, no final do século XII, deixando o reino nas mãos de seu  irmão João Sem Terra, em meio a grande agitação política. Este, em resposta à guerra dos barões, edita a Carta Magna que cria o primeiro parlamento inglês, formado por nobres e clérigos. Outra revolta, em Lewes, em 1264, força o rei Henrique III, já feito prisioneiro, a convocar o parlamento, então ampliado com a participação de gentis-homens e burgueses. Mas o que mais contribuiu para a bancarrota a aristocracia feudal inglesa foi a Guerra dos Cem Anos, contra a França. Pouco a pouco, ela foi substituída por outra aristocracia, a burguesa, que adquiria suas terras e substituía o sistema feudal pelo trabalho assalariado.

Essa mudança foi traumática para os camponeses. Na Inglaterra, a servidão já havia desaparecido desde o final do século XIV, mas as terras eram cultivadas pelos camponeses que detinham sua propriedade, ou posse, e as exploravam como trabalhadores livres. As famílias dos senhores feudais arruinados lançaram-se ferozmente contra os camponeses, expulsando-os do campo e lançando-os à miséria das cidades. Isso acontecia enquanto o governo e a nobreza inglesa se ocupavam das guerras dos Cem Anos e das Duas Rosas. As plantações foram substituídas por pastos para criar ovelhas, atividade que exige menor aporte de mão de obra. Com isso, os alimentos faltavam nas cidades e seus preços aumentavam. A burguesia, que já se consolidara como arrendatária de terras, passou a comprá-las das famílias arruinadas.

Nas cidades, se havia constituído um grande mercado de alimentos, altamente lucrativo, ao lado de formidável contingente de mão de obra disponível. Nessas condições, a burguesia comprava terras da pequena nobreza arruinada e desenvolvia suas atividades fabris. O reino de Henrique VII acabava de superar uma grave crise política, mas estava com suas finanças profundamente debilitadas pelos quase dois séculos de guerras. Essa situação crítica o preocupava. Ele tomou medidas institucionais de proteção do Estado, como a criação da Corte Suprema e, para recompor a economia inglesa, o aumento da arrecadação da Coroa. Em 1489, ele fez um decreto, que proibiu a destruição de todas as casas de trabalhadores com terrenos de mais de 20 acres (cerca de 9 ha) de terras. Mais tarde Henrique VIII, em seu decreto 25, confirma as leis de seu antecessor sobre essa matéria e ordena que se restaurem as granjas arruinadas, estabelece a proporção entre terras de cultivo e terrenos de pastos etc. Em outra lei, de 1533, limita o número de ovelhas por propriedade a duas mil.

Esses são apenas alguns exemplos que mostram a preocupação dos governantes com a produção de alimentos, que se deteriorara com a redução do número de pequenas propriedades e o avanço descontrolado da criação de ovelhas nas terras antes utilizadas para lavouras. O novo regime de propriedade da terra se contrapunha à tendência para a formação do latifúndio. Os conflitos gerados nesse processo iriam influir na política do século XVI que culminaria na Revolução Inglesa de 1640, pragmática e fortemente influenciada pelos conflitos religiosos entre católicos e protestantes, mas que teve como motor principal as contradições entre a monarquia absolutista, com sua concepção de poder de origem divina, com os interesses práticos dos capitalistas, tanto no setor agrário, quanto no fabril, que queriam o poder para defender esses interesses.

Como fundamento, a burguesia adotou a liberdade humana na sua forma individualista e renascentista. A revolução inglesa produziu uma mudança institucional para adaptar o Estado à nova realidade social da Inglaterra. A partir de 1660, o governo inglês passou a ser conduzido pela aliança entre nobreza e burguesia. Entretanto, suas diretrizes estavam de acordo com os interesses econômicos do país, numa economia já plenamente dominada pelo modo de produção capitalista, no qual o interesse da burguesia predominava. Pode-se dizer, portanto, que ela representou o acesso da burguesia capitalista ao poder. E é interessante observar que esse processo não foi conduzido por uma doutrina explícita, nem respondeu a nenhuma inspiração filosófica, mas a uma tendência para o predomínio do egoísmo, já fortemente presente no pensamento burguês.

A restauração do poder real que estabeleceu a monarquia institucional, que os ingleses chamam de Gloriosa Revolução, não foi, propriamente, uma revolução mas uma contra revolução em resposta à aquela popular de Cromwell, que tinha como bandeira a Commonwealth,  que pode ser entendida como a riqueza para todos ou pelo bem comum. Não era republicana, pois não se assentava sobre a soberania do cidadão, como seria conceituada um século mais tarde por Rousseau. Portanto, o poder burguês original não era nem revolucionário nem republicano. Ele resultara da união de duas aristocracias, a nobreza e a burguesia.

O movimento renascentista proclamara a liberdade do homem. Mas ele não se opôs ao cristianismo, nem mesmo à Igreja, mas ao poder que a Igreja se outorgava o direito  de ditar o que seria certo e o que seria errado, através de seus dogmas de fé. A liberdade proclamada era limitada ao livre pensar e ao livre agir, a desobrigar as pessoas da aceitação dos dogmas de fé da Igreja. Isso atendia à burguesia em ascensão e foi suficiente para dar condições a Lutero para negar a infalibilidade dos concílios da Igreja romana e exigir a liberdade para cada cristão interpretar por si mesmo os textos bíblicos. A questão filosófica da liberdade ainda estava em aberto. Sua conceituação mais precisa iria produzir grandes polêmicas na filosofia e na política, mas apenas no século XVIII.

A luta real que produzia mudanças na sociedade era imediatista, mais prática que a filosófica ou que teoria política. Ela se dava em torno da propriedade, em especial da propriedade da terra, que se colocava na ordem do dia com a dissolução do sistema feudal de produção. Havia revoltas contra o poder, mas também contra a miséria e contra as péssimas condições de vida dos trabalhadores. Mas essas revoltas eram manipuladas por interesses de grupos religiosos e da burguesia capitalista em expansão. Foram elas que levaram a Inglaterra à revolução, o mais importante evento histórico entre o Renascimento e o século XVIII.

Foi nesse quadro social que se formulou o liberalismo, a ideologia que deu argumentos à burguesia para sua prática social da desigualdade. A liberdade ela não podia condenar, pois dela necessitava para desenvolver seus empreendimentos. Mas essa liberdade precisa ser restrita para os trabalhadores, pois, do contrário, como a burguesia poderia submetê-los a regimes de trabalhos desumanos e a remunerações miseráveis?

Não faltaram intelectuais para emprestar sua pena para formular e defender uma doutrina da liberdade só para alguns em uma sociedade de desiguais. Foi nesse quadro que se formou o primeiro regime, sob o poder da burguesia, a monarquia constitucional, cujo poder é ditado pelo parlamento, sob o domínio da burguesia e dos nobres, hoje dividido em duas casas, a dos comuns e a dos lordes.

A primeira análise geral sobre o modo de produção capitalista foi feita por Adam Smith (1723-1790), filósofo e economista escocês, em Pesquisa sobre a natureza e a causa da riqueza das nações. Nesse livro, são encontrados os fundamentos do pensamento liberal, embora nem sempre lembrados pelos novos ideólogos do liberalismo. Smith acreditava que a origem da riqueza estava no trabalho, que é também a medida do valor das mercadorias. Ele defendia o papel da indústria no desenvolvimento da produção e acreditava fervorosamente que os preços eram definidos pelo equilíbrio entre oferta e demanda das mercadorias. Mas a marca deixada por Smith foi seu otimismo em relação ao liberalismo capitalista. Ele afirma:

Todo indivíduo se esforça continuamente para encontrar o emprego mais vantajoso para o capital que ele pode dispor. Certamente, é a seu próprio interesse que ele visa e não àquele da nação. Mas o zelo com o seu próprio interesse o leva naturalmente, ou necessariamente, a preferir o emprego mais vantajoso para a nação.

Embora tenha vivido na mesma época dos iluministas, Adam Smith era um tipo diferente de pensador. Sua preocupação era defender a liberdade e o interesse do capitalista, definidos na expressão laissez faire, enquanto os outros defendiam a liberdade e o direito de todos os homens. Enquanto os iluministas demoliam a autoridade dos dogmas da Igreja, ele criava esse dogma da mão invisível, muito mais danoso que todos os outros juntos. Sobre ele criou-se uma religião materialista, com o objetivo de dominar, não apenas o mundo dos negócios, mas toda a humanidade.

A questão do nascimento do liberalismo e seu desenvolvimento é analisada no meu livro História de Colapso da Civilização, que tem por objetivo buscar a compreensão do processo de crises simultâneas que estamos vivendo, a partir de fatos históricos e de da dissecação da ideologia neoliberal que não é, senão, o retorno ao liberalismo primitivo, que justificou a espoliação desumana dos trabalhadores. Esta foi sendo minimizada através de uma luta heroica e continuada dos trabalhadores, e dos pensadores que revelaram a natureza do processo monstruoso da espoliação capitalista, que hoje ameaça a humanidade com a destruição de tudo que foi conquistado por ela ao longo da história.

Rio de Janeiro, 15/7/2017.

 

 

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