Esse post foi publicado 26 de junho de 2017 às 14:35 e está arquivado em Textos. Você pode acompanhar quaisquer respostas a esta entrada através do RSS 2.0 feed. Você pode deixar uma resposta, ou trackback de seu próprio site.
O paraíso maculado
Arnaldo Mourthé
Embora Caminha possa ter visualizado naquela terra um paraíso, a missão de Cabral era outra. Ele havia partido do porto de Belém, em 9 de março de 1500, com uma frota de 13 navios e 1.500 homens, uma grande armada para a época. O objetivo era percorrer o Caminho das Índias para fazer acordos comerciais e estabelecer feitorias. Foi armado para a guerra. Havia informações que ele poderia encontrar dificuldade em Calecute, um de seus objetivos. A presença de uma expedição militar tornaria seu trabalho mais confortável, pois a linguagem dos canhões pesa muito na diplomacia e nos acordos comerciais.
Havia algo de diferente naquela nova terra tão rica e generosa como havia descrito Caminha. Seu povo. Dentre outras coisas, ele ressalta:
Traziam arcos nas mãos, e suas setas.(,,,) E Nicolau Coelho lhes fez sinal para que pousassem os arcos. E eles os depuseram.(…) Misturaram-se todos tanto conosco que uns nos ajudaram a acarretar lenha e metê-las nos batéis. (…) seus corpos são tão limpos e tão gordos e tão formosos que não podem ser mais. (…) E comem senão desse inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam. (…) a terra em si é de muitos bons ares e frescos com os de Entre-Douro-e-Minho. (…) As águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem! (…) Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos (…).
Essas últimas palavras de Caminha haveriam de tocar fortemente a Igreja portuguesa, empenhada na catequese que, de tão fervorosa, adotou a Inquisição. O Rei tinha todos os motivos para abraçar acausa de colonizar aquelas terras e aquelas gentes. Os primeiros portugueses a migrarem para o Brasil vinham por sua conta e risco. Eles foram bastante úteis ao comércio do pau-brasil, por suas relações com os nativos às quais Darcy Ribeiro deu o nome de cunhadismo. Esse comércio ganhou um grande mercado na Europa para a tintura de tecidos. Esta atividade, altamente lucrativa, despertou o interesse de outras nações que passaram a enviar expedições à costa brasileira. Os primeiros foram os franceses que exploraram a costa desde o Amazonas até o Rio de Janeiro, desde 1504. Iniciou-se o contrabando do pau-brasil.
A migração voluntária dos portugueses não era suficiente para garantir a posse de tamanho território, mesmo com sua integração com os índios. O rei de Portugal D. João III reagiu. Em 1530 enviou ao Brasil Martin Afonso de Souza para demarcar seu território e informá-lo sobre o que havia visto. Sua marca ficou no povoado de São Vicente que ele fundou em 1532. Seu relato ao Rei aumentou sua apreensão. O Rei decidiu então conceder a exploração do território a pessoas de sua confiança, o que aconteceu entre 1534 e 1536. Foram criadas as capitanias hereditárias, com poder amplo, que incluía a escravidão de índios e receita de 10% sobre metais e pedras preciosas extraídas no território, com a condição de fazê-lo também para o Reino, à taxa de 20%. Eles só não tinham direito sobre a propriedade da terra. No mais seu poder era discricionário. Foi a partir daí que se formaram os engenhos de açúcar e a legalização do comércio do pau-brasil, criando uma casta de privilegiados, que comandariam o Brasil até 1930.
Os índios não aceitaram a escravidão, revoltaram-se. Portugal não tinha força para submetê-los. Eles eram os senhores da terra ocupada. A conheciam plenamente, pois nela viviam há pelo menos dez milênios. Por outro lado a população portuguesa era de apenas 1,2 milhão de pessoas, conforme censo de 1527. Portugal foi buscar na África mão de obra escrava, aproveitando-se de suas relações com reis tribais, que fizeram guerras para fazer prisioneiros que eram vendidos aos portugueses. Esse processo gerou 350 anos de escravidão que marcou a história do Brasil.
O processo de colonização do Brasil teve duas vertentes bem nítidas. Uma de migrantes autônomos que se mesclaram com os índios e formaram corpos sociais, adaptados às condições das regiões que ocuparam. Dessa forma foram surgindo uma grande diversidade de culturas onde a contribuição índia era preponderante por mais de dois séculos. Afinal, eram eles que conheciam o trato da terra, tudo sobre sua natureza e era deles a primeira língua no início dessa formação cultural. Foram criadas assim muitas comunidades caboclas que hoje encontramos distribuídas pelo Brasil mas, agora, já fortemente influenciadas pela cultura europeia.
O primeiro censo oficial do Brasil, mandado fazer por D. Pedro II em 1872, mostra uma população de 9.939.474 pessoas, das quais 1.510.806 escravos, 15% do total. Estas eram distribuídas em engenhos de açúcar, fazendas de café e na Corte, onde prestavam serviços domésticos. Sustentavam uma casta de senhores e suas famílias que produziam principalmente para a exportação. A grande maioria, mais de 80% da população era voltada para sua sobrevivência e o desenvolvimento da Nação. Mas o poder político pertencia às castas. O voto era censitário. Só votavam aqueles que pagavam impostos acima de determinado valor. Assim a casta se manteve no poder até a Revolução de 1930. Ficaram fora desse censo as comunidades índias e quilombolas.
Os quilombos eram comunidades de negros fugitivos que se organizavam em áreas relativamente protegidas. Sua forma de organização variava, mas um indicador comum era a preservação de sua cultura original. Alguns tinham organização avançada e até forças de segurança. Nos maiores, eram encontrados além de fugitivos, índios, negros alforriados e brancos que não queriam se submeter aos tratamentos recebidos e ao pagamento de tributos. Não se tem informações quantitativas confiáveis, mas eram milhares, mas os mais notáveis foram esmagados e suas populações exterminadas.
Foi esse sistema que amarrou o Brasil aos interesses das metrópoles, Portugal, Inglaterra, EUA, associadas a uma casta de privilegiados e seus acólitos, que viam o país apenas como um bom negócio, jamais como uma Pátria. Ele pôde funcionar porque estava enquadrado dentro de outro maior da expansão do capitalismo mundial que, malgrado todas suas mazelas, desenvolvia as forças produtivas, sobre o fundamento da apropriação privada do excedente de produção das populações sob sua influência. Mas outras nações tiveram outra sorte.
Os EUA, que tem cem anos menos de história que nós, prosperou de forma extraordinária, e é hoje o principal império do mundo. Seu território é menos rico que o nosso, mas seus dirigentes tinham uma visão mais aberta. Eles se espelharam nos seus “Pais fundadores”, que declararam sua independência do país onde o capitalismo industrial nasceu e que já havia passado pela Revolução Industrial. Para tal eles precisavam ser superiores no seu pensamento, e o foram. Eles beberam na fonte do iluminismo francês, principalmente através de Benjamin Franklin. Este era um homem de ciência e grande cultura. Deixou trabalhos memoráveis sobre a eletricidade que contribuíram para a invenção do para-raios. Pertenceu à Academia Francesa de Ciências. Conseguiu em Paris voluntários para a causa americana, dentre eles o marquês de La Fayette que contribuiu na modernização das forças revolucionárias americanas, constituídas inicialmente de simples agricultores e de uma pequena classe burguesa das pequenas cidades das colônias. O pensamento iluminista aparece claramente na Declaração de Independência americana, redigida por Thomaz Jefferson. O texto que se segue é parte dela:
[…] Nós temos por evidentes por elas mesmas as verdades seguintes: todos os homens são iguais; eles são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis: entre esses direitos se encontram a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Os governos são estabelecidos entre os homens para garantir esses direitos, e seu justo poder provém do consentimento dos governados. Todas as vezes que uma forma de governo ameace esse objetivo, o povo tem o direito de mudá-lo ou de aboli-lo, e estabelecer um novo governo, fundado sobre os princípios e organizado na forma que lhe parecerão os mais adequados para lhe oferecer a segurança e a felicidade […].
Os Inconfidentes Mineiros tentaram seguir o mesmo caminho dos americanos, buscando orientação no iluminismo e na instituição da República. Não tiveram êxito. O Brasil era rico demais para que uma metrópole europeia pudesse se dar ao luxo de deixá-lo tornar-se independente. O ouro de Minas havia transformado Portugal em um grande império, e financiara parte da Revolução Industrial, graças dependência da Corte portuguesa à sua metrópole de referência, a Inglaterra.
No Brasil nossas castas continuavam a seguir a cartilha da Inquisição que o rei D. João III havia adotado em Portugal, em 1536, por coincidência ou não, enquanto ele concedia a seus amigos as capitanias hereditárias. Não foi por acaso que amargamos as estruturas sociais arcaicas que se estenderam até a Revolução de 30. E quando essa ocorreu, as castas depostas persistiram na obstinação de dominar o país para entregá-lo uma associação destrutiva, delas próprias com sua nova metrópole, mas agora já sob uma nova época, a do império do capital financeiro. Esse é o processo que levou ao caos que vivemos no Brasil. Não há como conciliar com essa elite calhorda que nos governa, diretamente ou através de prepostos travestidos de lideres populares ou de “homens de bem”. Mas todos subordinados aos interesses do capital financeiro internacional, sob as formas que a Lava Jato vem revelando e outras.
Rio de Janeiro, 21/6/2017
05, maio 2022 11:36
13, novembro 2021 12:56
09, agosto 2021 12:10