Pensar o futuro é preciso! V


A dialética revela a natureza do capitalismo

Arnaldo Mourthé

Hegel foi professor em Iéna, Alemanha, e teve muitos seguidores. Alguns formaram uma associação para estudos filosóficos que se intitulava  Jovens hegelianos. Como vimos no artigo anterior sobre a dialética, para Hegel a história é formada de uma sucessão de formas de pensar, influenciadas pelas formas anteriores. Apesar da capacidade do ser humano de mudar uma realidade, ele é sempre condicionado a essa mesma realidade, à qual ele está submetido. Mas há sempre tensões entre formas de pensar e de ser, dentro de uma realidade no nosso mundo. Essas tensões podem ser quebradas por ações e outras formas de pensar, que rompem o equilíbrio entre os contrários que as provocam. Hegel chamou de tese a forma dominante naquele momento; de antítese, a negação dela; e de síntese, a forma resultante do confronto das duas anteriores, que é uma superação da contradição daquela realidade.

Karl Marx (1818-1883), além de jornalista e pensador, estava vinculado por sua militância a questões concretas da vida do trabalhador, em especial operários das fábricas criadas pelo capitalismo. A contradição mais nítida para ele dentro de uma contradição social maior entre classes sociais era a que se situava dentro do modo de produção capitalista, a relação entre os operários e os donos das fábricas.

Hegel havia usado a dialética no estudo das contradições entre ideias e dessas com realidade, à semelhança do que fez Sócrates. Marx, enquanto estudante, foi membro dos Jovens hegelianos, tendo estudado as teorias de Hegel. Mas ele também estudou as obras de Ludwig Feuerbah (1804-1872), um humanista ateu com concepções materialista, inspirado na Natureza.  Juntando os pensamentos dos dois, sentiu que poderia aplicar o método dialético para além das ideias, para analisar as relações materiais. O que o tocava mais de perto era a luta dos trabalhadores nas fábricas por melhores salários e condições de trabalho, tendo como oposto o interesse do capitalista, o lucro. Levando essa visão mais longe, ele poderia analisar os fenômenos históricos na ótica da evolução das forças produtivas. A essa possibilidade ele dá o nome de materialismo histórico, uma expressão de conotação imprecisa, que dá a impressão que todo o processo de evolução da sociedade é apenas material. Mas essa não é a questão que nos interessa no momento, mas sua aplicação objetiva na análise do modo de produção capitalista e da sociedade que ele criou.

Com o método da dialética de Hegel, Marx revela a natureza do capitalismo, a partir da sua contradição fundamental gerada pelo lucro. Mas por que contradição? Porque o modo de produção, no qual a apropriação da produção é feita pelo capitalista gera um desequilíbrio, que o sistema não consegue superar.

No sistema capitalista, a mercadoria produzida e tudo que é utilizado na sua produção pertencem ao próprio capitalista. Para que isso ocorra, ele compra o necessário à sua produção, equipamentos, ferramentas, utensílios, matéria-prima e força de trabalho com o seu dinheiro, o seu capital. O custo da produção pode ser apresentado de forma simplificada como C + V, sendo C capital constante, o que paga os meios de produção, equipamentos e materiais aplicados na produção e V o capital variável, o salário pago ao trabalhador. O preço de venda do produto contém, entretanto, uma parcela a mais, o lucro, condição necessária para que o capitalista se anime a produzir. Ele é representado por C + V + S. Ninguém, em sã consciência, aplicaria seus recursos para produzir e vender pelo preço de custo. Como o preço da mercadoria à venda não pode ser maior que o seu valor, o custo do trabalho aplicado na sua produção, sob pena de não ser vendável, o lucro só poderá existir se houver trabalho não remunerado. A condição do lucro é o trabalho em tempo maior que o necessário para o trabalhador produzir o correspondente a seu salário, o trabalho a mais não pago, a mais-valia. O sistema capitalista não descobriu a exploração do trabalho humano, que existiu ao longo da história, mas criou uma relação de produção que faz com que essa exploração seja apropriada pelo capitalista. Marx chamou esse valor produzido pelo trabalho excedente ao necessário para pagar o salário do trabalhador, e que gera o lucro, de mais-valia. Ao produzir lucro, o capitalista produz também acumulação de capital que, investido, desenvolve as forças produtivas. Isso quer dizer que é o trabalho a mais do que o necessário ao consumo do trabalhador que desenvolve as forças produtivas. O capital é a forma sob a qual esse trabalho se apresenta.

 

A mercadoria é vendida por mais dinheiro que o despendido pelo capitalista no pagamento dos salários e das matérias-primas, além de outras despesas, inclusive as pessoais do próprio capitalista. A diferença entre o valor da mercadoria e todas essas despesas é o lucro líquido do capitalista, que ele acumula para investimentos posteriores. Para que todas as mercadorias produzidas sejam vendidas, é preciso que haja uma fonte de dinheiro fora do sistema, que compense o entesouramento do lucro. Se o sistema fosse fechado, não contasse com outra fonte de recursos para compensar o entesouramento do capitalista, parte da mercadoria não poderia ser convertida em dinheiro. Ela ficaria estocada e geraria uma crise tão logo o capitalista precisasse vendê-la por qualquer razão. A agregação de novos mercados é uma necessidade para a venda de toda a mercadoria produzida. Essa é a principal contradição do sistema capitalista. Temporariamente, pode-se criar um mercado através do crédito. Mas essa é uma solução precária, cuja repetição levará à inadimplência, gerando crises. A história do capitalismo é permeada de crises, de estoque, se o enfoque é o produtor, ou de consumo, se é o consumidor.

 

A expansão do mercado pode ocorrer pelo investimento na expansão do negócio. Na fase de sua implantação, a nova unidade produtiva não produz, mas consome capital, em material e serviços. Ela, assim, gera mercado para consumir o excedente retido com o capitalista. Essa é forma positiva de aplicação do lucro, pois gera o desenvolvimento da produção. Ele pode também ser investido em pesquisas e formação do pessoal, cumprindo a mesma função. Mas isso só poderia ser garantido se houvesse um planejamento do investimento que permitisse o consumo dos excedentes de produção. Essa solução teórica foi o que justificou o surgimento do modelo socialista russo, que na verdade tornou-se um capitalismo de Estado.

 

Mas a experiência histórica mostra que o caminho adotado pelo capitalismo foi o colonialismo, que demonstrou ser extremamente lucrativo no período mercantilista. Mas a história não é linear e a dinâmica do modo de produção era superior às decisões das nações onde ele se instalou. Houve um momento que o colonialismo inaugurado nas Américas e depois levado ao Oriente, não era suficiente para a expansão do sistema. A solução mais fácil era forçar a colocação dos produtos industriais, que tinham como principal fonte a Inglaterra, nos países vizinhos da Europa. A competição comercial tornou-se feroz. A consequência foram inúmeras guerras pelos mercados, mascaradas pelas mais variadas justificativas. As principais que deram início a esse processo foram a Guerras Napoleônicas. O curioso que foram sete guerras, com alianças variadas, das quais a Inglaterra participou de todas contra a França, numa disputa feroz que domínio econômico da Europa. Depois veio a Partilha da África, que gerou divergências com a Alemanha e Itália, que se sentiram prejudicadas, o que repercutiu na guerra de 1914-1918 e, depois retornou de forma mais dramática na guerra de 1939-1945. Segundo Lauro Campos, no seu livro A crise completa, “Entre 1740 e 1974 pelos menos 366 guerras foram deflagradas atestando a presença de pulsôes e necessidades destrutivas para conter a eficiência cega do capital.

 

Mas as guerras, aparentemente entre nações, tinha uma origem dissimulada de uma forma superior de solução temporária das crises capitalistas, através da queima dos excedentes da produção acumulada que geram as crises. Quanto às crises o mesmo Lauro Campos diz em seu livro que: As crises de 1810,1818,1825,1837,1847, 1857, 1864, 1873,1882,1890 e as de 1900, 1807 e de 1929, na medida em que se identificam como crises capitalistas verdadeiras, revelaram que a redução intermitente da capacidade produtiva se apresenta como uma necessidade imanente ao modo de produção capitalista.

 

Essa contradição do capitalismo fez do seu modo de produção, um sistema de destruição, na busca desenfreada por sua sobrevida, o que é uma tenebrosa ilusão, pois só agrava seu desequilíbrio, com consequências catastróficas para a humanidade. O capitalismo demonstra hoje, especialmente no Brasil – onde assumiu uma configuração grotesca de associação do capital financeiro internacional com uma casta que vê o país apenas como uma sesmaria a ser espoliada -, sua absoluta incapacidade de resolver os problemas da humanidade. Mesmo aqueles mais clamorosos, da fome, da humilhação dos refugiados de guerra, das discriminações de toda ordem, das guerras econômicas e do conflito entre os povos. Aqui, estamos passando por um processo de renúncia à soberania nacional e à cidadania, em benefício de um capital espúrio, sem lastro ou obtido por meios escusos fora da atividade produtiva. Se o leitor acha que é um exagero essas palavras, eu cito aquelas do papa Francisco a embaixadores junto à Santa Sé, em 26 de maio de 2013. Esse texto foi publicado por Frei Beto no jornal O Globo de 13/5/2017.

 

            “Criamos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro encontrou uma imagem nova e desapiedada do fetichismo do dinheiro e da ditadura da economia sem rosto nem objetivo realmente humano. A crise mundial que atinge as finanças e a economia parece evidenciar as deformidades e, sobretudo, a grave falta de perspectiva antropológica, que reduz o homem a apenas uma das suas exigências: o consumo. E, pior ainda, hoje o próprio ser humano é considerado um bem de consumo descartável.

            Inauguramos uma cultura do desperdício. Nesse contexto, a solidariedade, o tesouro dos pobres, é muitas vezes julgada contraproducente, contrária à realidade financeira e econômica. Enquanto os rendimentos de uma minoria crescem de maneira exponencial, os da maioria diminuem. Esse desequilíbrio deriva de ideologias que promovem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira, negando assim o direito de controle aos Estados, aos quais caberia a responsabilidade de zelar pela bem comum,”

Rio de Janeiro, 10/6/2017.

 

 

 

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