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A dialética
Arnaldo Mourthé
A dialética é um método de pensar que considera as contradições que existem em todas as coisas. O seu precursor no pensamento ocidental foi o filósofo grego Heráclito (576-480 a. C.) que acreditava que a natureza era dinâmica, passando por transformações, e não estática como pensava Parmênides (540-480 a. C.), que dizia que tudo que existe sempre existiu.
Heráclito dizia que todo movimento e toda quietude são efêmeros, e que cada coisa possuía um oposto. A doença e a saúde, a fome e a saciedade, a guerra e a paz, o verão e o inverno, cada um era o oposto do outro. A opinião das pessoas era como brinquedo de criança. Sem a interação dos opostos o mundo não existiria. Ele foi o precursor da dialética e inspirou Hegel a criar seu método dialético para compreender a evolução do pensamento humano.
Logo depois da morte de Heráclito, nasceu Sócrates (470-399 a. C.), que viveu um momento marcante da história de Atenas. Ele assistiu aos desmandos de uma oligarquia, que através de Péricles, considerado por muitos historiadores como exemplo da democracia ateniense, conduziu Atenas a uma guerra fraticida, a guerra do Peloponeso, embalado nos grotescos ensinamentos dos sofistas. Foi nesse contexto que Sócrates se revelou como um grande pensador, demonstrando a falsidade dos ensinamentos dos sofistas a partir dos conceitos da dialética nos seus diálogos.
Sócrates era autodidata e amava a reflexão. Chegou à conclusão de que o pensamento de Atenas estava perdido no meio de mitos, crenças e argumentos que não tinham respaldo na verdade, e que isso criava muitos problemas para as pessoas. Elas se desorientavam e eram manipuladas na sua boa-fé. Fez da pesquisa do conhecimento e do combate à ignorância um apostolado. Parece estranha essa afirmação, mas ele encontrou não apenas uma cidade dominada pela ignorância, mas também pela farsa dos sofistas e de seus discípulos políticos, com sua sede de poder e seus privilégios. Sócrates fez sua cruzada pessoal no diálogo com a população na praça do mercado de Atenas, a Ágora. Ali se reuniam comerciantes e seus clientes, vindos de toda parte, assim como homens públicos e cidadãos que frequentavam os prédios públicos à sua volta. Mas também dialogava com seus discípulos e admiradores nas casas de seus amigos.
Os ensinamentos de Sócrates estão intimamente ligados a seu método de diálogo. Ele colocava uma questão a seu interlocutor, como para seu próprio esclarecimento. Após as respostas, ele acrescentava outra pergunta sobre outro aspecto do mesmo tema. Se a resposta fosse coerente ele continuava a questionar. Quando ela contraditava com outra anterior ele fazia intervenções ressaltando a contradição. Ia remodelando o pensamento do outro até que os dois chegassem a um entendimento comum. Vez por outra o interlocutor se agastava com a demonstração de sua incoerência, ou ignorância, e abandonava o diálogo. Nesse processo ele conquistou discípulos e amigos, mas também houve debatedores contrafeitos que se tornaram inimigos. Alguns deles o levaram ao tribunal e à condenação à morte.
A dialética teve grande influência na formação do pensamento renascentista. Depois da união do Império Romano com a Igreja Católica, sacramentado no concílio de Nicéia, a dialética foi proibida nos ensinamentos da Igreja para leigos. Para exemplificar isso há a história de Roger Bacon (1214-1294).
Bacon, já com sólida formação acadêmica, ingressa na Ordem Franciscana para ampliar seus conhecimentos. No convento ele teria acesso às informações que lhe esclareceriam muitas de suas dúvidas. Ele era cristão e estava à busca da verdade. Depois de muitos estudos e reflexões ele desenvolveu seus conhecimentos científicos que fizeram dele o precursor do método experimental. Ele considerava que além da autoridade de quem diz, é sempre preciso verificar pela própria experiência a veracidade das informações. Esta sua busca pela verdade, como fez Sócrates, levou-o a se liberar da escolástica, que submetia a razão à fé cristã. Ele demonstrou que muitos conceitos da Igreja sobre a natureza eram pura ilusão. Sua postura e seu empenho fez dele um dos maiores sábios de sua época. Seus trabalhos científicos foram pioneiros em vários setores. Ele foi o precursor do método experimental, mais tarde formulado por Francis Bacon (1561-1626). Mas, ao publicar suas obras, que foram consideradas hereges, ele foi condenado a prisão por dez anos. Foi libertado em 1292, vindo a falecer em 1294.
Mas, a busca pela verdade não parou. No século XV Marsílio Ficino (1433-1499) foi agraciado pela família Médici, de Florença, com uma escola onde investigou e ensinou o neoplatonismo. Ele traduziu as obras de Platão e dos neoplatônicos. Dessa forma ele difundiu a dialética que contribuiu decisivamente para a liberdade de tratamento de todas as questões da vida, da ciência e das artes. Perseguido pela Igreja ele refugiou-se em Florença sob a proteção da Lourenço de Médici.
Mas a dialética só tomou forma, como método de análise, com o filósofo alemão Hegel ((1770-1831). Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) nasceu na Alemanha. Ele viveu numa época de muitas mudanças na Europa e no Mundo. Os impactos da Revolução Industrial na Inglaterra, da Revolução Francesa, da era napoleônica e da restauração da realeza na França mostraram-lhe um mundo vigorosamente dinâmico em comparação com os períodos anteriores. Ele assistiu à transformação da passividade das massas populares em ações revolucionárias, nas manifestações de rua e nas barricadas, e a uma luta aberta entre classes sociais pela apropriação das riquezas e do poder. Ele viu também o homem domar certas forças da natureza, multiplicando a produtividade do trabalho. Aquele era um período também de grande vigor filosófico. Hegel nasceu pouco antes da morte de Rousseau e foi, por alguns anos, contemporâneo de Kant.
Inspirado em Heráclito e Platão, Hegel compreendeu que o mundo estava em contínua transformação, e que toda existência implicava contradição entre opostos. A partir desses conceitos, criou um método que lhe permitiu estudar a evolução do pensamento humano, o método dialético, que foi o núcleo da sua filosofia, um instrumento para investigar o processo histórico e de aquisição do conhecimento. Para ele a história é formada de uma sucessão de formas de pensar, influenciadas pelas formas anteriores. Apesar da capacidade do ser humano de mudar uma realidade, ele é sempre condicionado a essa mesma realidade, à qual ele está submetido. Mas há sempre tensões entre formas de pensar e de ser, dentro de uma realidade no nosso mundo. Essas tensões podem ser quebradas por ações e outras formas de pensar, que rompem o equilíbrio entre os contrários que as provocam. Hegel chamou de tese a forma dominante naquele momento; de antítese, a negação dela; e de síntese, a forma resultante do confronto das duas anteriores, que é uma superação da contradição daquela realidade.
Para ele, a “superação dialética” é simultaneamente a negação de uma determinada realidade, a conservação de algo essencial que existe nessa realidade negada e a elevação dela a um nível superior.
Hegel se opôs à formulação de Adam Smith, que confia ao mercado o papel de buscar a harmonia na sociedade civil, e ao seu conceito sobre a sociedade civil, questão que Hegel havia estudado nas filosofias grega e romana. Vejamos o que ele escreveu em um dos seus cursos sobre o tema sociedade civil, em que se notam também conceitos de Rousseau.
O Estado é diferente (da sociedade civil), ele consiste em ter objetivo universal, de maneira que a unidade enquanto ela própria é o objetivo […]
A sociedade civil tem por fundamento, por ponto de partida, o interesse particular dos indivíduos. Os franceses fazem uma distinção entre “burguês” e “cidadão”. O primeiro conceito concerne à situação do indivíduo dentro de uma comunidade, a satisfação de suas necessidades; o “burguês” não tem relação política, somente o cidadão a tem. Aqui, no estudo da sociedade civil, nós não examinaremos o indivíduo senão como “burguês”. Quando se fala do Estado como uma associação de diferentes pessoas, trata-se de uma unidade que não é senão o interesse comum; quando só há um interesse exterior entre as pessoas e não interior entre os indivíduos, temos uma questão pertinente à sociedade civil […] O objetivo do indivíduo é egoísta, mas ele é condicionado pelo universal. A sociedade civil é um sistema de dependência multilateral, no qual suas conexões permitem alcançar os objetivos egoístas. […] O primeiro princípio (da sociedade civil) é o objetivo egoísta, o segundo é o entrelaçamento desse objetivo com o do outro; […] de sorte a não se alcançar senão uma unidade exterior e não uma unidade de conceito […]
A força do Estado assegura que as necessidades do indivíduo sejam satisfeitas, que a individualidade se realiza, ela mesma se encontrando no Estado, essa identidade do universal e do particular, onde o eu, o meu eu, se realize.
Este texto de Hegel mostra que estamos envolvidos em um emaranhado de conceitos que dificultam nossa compreensão da realidade, fazendo com que confundamos as coisas, perdendo nossa percepção sobre a realidade. A dialética, se aplicada com critério, é um poderoso instrumento para compreender os processos sociais que nos envolvem e quase sempre nos aprisionam, retirando de nós o poder de gozar nossa liberdade.
O fato de se perceber que tudo que existe gera um oposto, permite que nós vejamos se há ou não equilíbrio entre esses opostos. É o que acontece na Natureza e no Cosmos, assim como no mundo espiritual. Entretanto, na sociedade que vivemos esse equilíbrio, quando existe, é precário. Em geral o que existe é um grande desequilíbrio entre os opostos, um se sobrepondo ao outro. Em algumas circunstâncias esse desequilíbrio gera a anulação de um dos oposto, que se torna subordinado, submetido a um sofrimento perverso e desnecessário. Isso se dá pelo egoísmo nas relações, que substitui a fraternidade que aponta para a equidade entre as partes. Esta é a questão central de nossa Era.
Toda a luta do homem que a história registra é pela conquista da liberdade e da igualdade. Se assim é, é porque nem uma nem outra condição é respeitada. A análise dos processos que envolvem nossas vidas através do método dialético, das contradições entre opostos, pode nos encaminhar para uma síntese que represente uma unidade, o equilíbrio ente os opostos.
Isso ainda não se configurou na nossa história, mas contribuiu para que as desigualdades fossem reduzidas e as liberdades ampliadas. Entretanto, nos nossos dias verificamos o contrário: as contradições se tornam cada vez mais nítidas e o sofrimento que elas geram é estarrecedor. Mas quando essas contradições extrapolam certos limites, a unidade precária que une os opostos se rompe e entramos numa crise. A atual é uma catástrofe que se configura como o encerramento de uma Era. E é disso que se trata.
Não nos cabe aqui, pelo menos por enquanto, tratar dessa questão maior, mas é preciso ter em mente que é fundamental nós nos conscientizarmos do que está ocorrendo. O método dialético é um instrumento essencial para a compreensão de algumas dessas contradições, pela complexidade do conjunto do problema, onde se abrigam múltiplos processos. É preciso identificar a contradição fundamental que envolve todo o conjunto de problemas secundários e, dentre esses, aqueles que em determinadas condições possam parecer a contradição fundamental que precisa ser enfrentada. Mas, em geral, ela apenas se apresenta como tal, sem ser, e por isso é chamada de “principal”, a contradição maior daquele momento. Mas não podemos nos deixar enganar e descuidarmos daquela fundamental, que preside todo o processo.
Vivemos nesse momento uma série de crises no Brasil, que vão da política à econômica, passando pela institucional. Todas com graves consequências sociais. Mas não podemos nos deixar enganar, quando nos querem fazer pensar que a solução de uma ou mais de uma dessas crises resolverá nossos problemas. O que não é verdade se a contradição fundamental permanecer.
A contradição fundamental dessa monumental crise que enfrentamos, está no centro do próprio sistema capitalista. Ela é produzida pela apropriação privada, de poucos, do extraordinário excedente de produção, no Brasil e no mundo. Esse poderio financeiro, que soma mais de duas vezes o PIB anual mundial, manipula os países, suas economias, seus governos e ainda nossas mentes, através da inoculação de ilusões, que nos fazem alienados e desorientados.
Mas também não podemos deixar de compreender que a crise principal no Brasil, neste momento, é a financeira. É ela que está levando o país à insolvência, agravando todas as outras contradições que compõem o conjunto de todas as outras provenientes da condição terminal do sistema capitalista. No próximo artigo falaremos sobre isso.
Rio de Janeiro, 6/6/2017
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