Os novos barões do café (XXIX) – Qual seria a natureza do PT e do governo Lula?


Qual seria a natureza do PT e do governo Lula?

Arnaldo Mourthé

Comecemos recordando das condições que levaram à queda da ditadura. Nós vimos que o cenário internacional mudou no período de 20 anos da ditadura. Não era mais conveniente um governo militar incompatibilizado com a população, por sua covarde ação repressiva e um resultado econômico péssimo nos seus últimos anos como já vimos. Era preciso restaurar o processo democrático, mas havia um risco para os interesses do capital internacional e das castas dominantes da sociedade. Era preciso grande cuidado para que não voltassem ao poder aqueles que representavam a política de desenvolvimento com soberania e justiça social, como Brizola, ou os mais sofridos trabalhadores brasileiros, como os nordestinos que padeciam sob a prepotência dos senhores de terra, como Arraes. Também não queriam os mais ferozes membros da ditadura o retorno de um partido comunista, que ganhara prestígio com a resistência à ditadura, especialmente através de Marighela.

Dessa forma, nas discussões sobre a anistia, uma das condições dos militares era a exclusão dela dos três grandes líderes citados, todos ainda vivos e na memória das pessoas. Os parlamentares estavam cedendo à pressão dos militares, prontos a aceitar a exclusão daquelas lideranças dos benefícios da anistia. Mas uma forte reação ocorreu, dentro e fora do Brasil. Aqui as pessoas engajadas ou simpatizantes da luta contra as atrocidades do governo militar e, no exterior, os exilados, seus simpatizantes e parlamentares europeus que apoiavam a luta do povo brasileiro pela democracia. Esse apoio era também da imprensa europeia, principalmente, mas também na América Latina. Contavam os exilados com o apoio de países, com a Argélia, que lhes abrigava, assim com  Portugal a partir da Revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974, e das ex-colônias portuguesas recém libertadas.

A imprensa francesa e a italiana davam ampla cobertura aos movimentos a favor da anistia. O jornal Le Monde publicava documentos dos exilados referentes ao Brasil da ditadura, chegando a ocupar meia página do jornal, em mais de uma feita. Os parlamentares italianos chegaram a criar uma comissão especial para acompanhar a luta pela anistia no Brasil e apoiar os exilados brasileiros. Muitas reuniões aconteciam em recintos importantes da Europa, como da La Mutualité Française, em Paris, onde muitos artistas ligados ao movimento se apresentaram e até houve ali uma conferência de Miguel Arraes, então exilado em Argel, com grande repercussão nos meios políticos e intelectuais da França. Na Itália ocorria a mesma coisa. No México havia um grande grupo de exilados, muitos professores universitários. Francisco Julião também encontrou ali seu refúgio. Realmente havia um risco de um líder popular de peso e engajado em defesa do nosso povo e da nossa nacionalidade chegasse ao poder central. Os parlamentares depois de fortemente questionados pelo movimento pela Anistia Ampla Geral e Irrestrita, tiveram que resistir aos militares, que acabaram cedendo.

Para os militares e as forças políticas reacionárias que os apoiavam era preciso encontrar um artifício para evitar que assumisse a Presidência da República um líder que colocasse em primeiro lugar a soberania nacional e os interesses do povo brasileiro. Era preciso criar um partido com cara popular, mas que aceitasse a política de interesse do grande capital. Esse partido foi o PT – Partido dos Trabalhadores. A primeira questão é que a eleição para presidente teria que ser indireta, através do Congresso Nacional. A eleição geral de 1982, para todos os cargos eletivos menos a presidência da República, mostrou que a preocupação dos militares tinha fundamento. Brizola ganhou no Rio de Janeiro e seu partido ganhou também no Rio Grande do Sul. Tudo indicava que Brizola poderia chegar à presidência da República, se não fosse ele, poderia ser outro com política semelhante à sua, o que era inadmissível para a oligarquia enquistada no poder sob a proteção militar.

Por outro lado, a oposição também viu sua possibilidade de chegar ao poder, e lançou-se numa campanha nacional pela eleição pelo sufrágio universal, sob a bandeira das Diretas Já. Mas a emenda constitucional que permitiria isso não passou no Congresso, onde ainda predominava interesses que não correspondiam aos do povo brasileiro. Caberia ao mesmo Congresso escolher um presidente civil à Presidência. Os militares colocaram com seu candidato, Paulo Maluf, figura polêmica que não conseguiu unir o PDS, partido do governo. Surgiu uma dissidência que se aliou a Tancredo Neves, candidato escolhido pela oposição, com a condição de ter na chapa a vice-presidência, para a qual foi indicado José Sarney.

Tancredo Neves foi o vencedor, mas morreu antes de assumir o cargo, deixando o lugar para José Sarney que havia sido líder do partido da ditadura, a ARENA, que depois da reforma eleitoral passou a chamar-se  PDS – Partido Democrático Social. É interessante notar que o PT se absteve da votação, sob a alegação de ser contra a eleição indireta. Apenas três deputados do PT votaram em Tancredo, Beth Mendes, Airton Soares e José Eudes. Estes tiveram que deixar o partido sob ameaça de expulsão.

A morte de Tancredo criou uma comoção nacional. Não faltaram especulações que ela poderia ser evitada e não o foi. Curiosamente ele havia escrito no seu discurso de posse, lido na por Sarney na sua posse, a expressão: restaurar a República e não pagar a dívida externa com a fome do povo. Depois disso, as suspeitas sobre uma morte não natural não são apenas teoria da conspiração.

Dadas essas premissas voltemos à análise da natureza do PT. Ele foi um partido nascido de um forte movimento sindical do ABC paulista, onde se concentrava a maior parte da indústria automobilística brasileira. Era um movimento mais corporativista que ideológico, Não tinha aquilo que os sociólogos chamam de consciência de classe. Mas defendiam seus interesses, nas condições objetivas em que se encontravam, de uma classe operária massacrada pelo arrocho salarial da ditadura. Mas ocupavam uma posição privilegiada, em relação a seus similares de outras indústrias com tecnologias mais pobres. Mesmo assim seus salários estavam longe de alcançar os patamares dos trabalhadores europeus ou americanos que faziam o mesmo trabalho. Só que as plantas industriais do Brasil eram antigas, nos Estados Unidos seriam sucatas. Mas eles não tinham consciência disso, e se satisfaziam com seus privilégios em face de seus semelhantes brasileiros de outros setores industriais.

O movimento sindical do ABC foi um pilar do PT. Ele tornou-se mais forte com a política social de Fernando Henrique Cardoso, que considerava todas as pessoas como simples indivíduos, não como cidadãos. Para ele as pessoas não eram unas, cidadãos, não importa a atividade que exercessem, mas produtores ou consumidores. Ao consumidor tudo, ao produtor o arrocho salarial, a redução de direitos, a desconsideração. Eram ora corporativistas, ora despreparados, ora insubordinados. Os que perdiam emprego eram incompetentes. O desemprego seria de responsabilidade do desempregado e não do sistema de espoliação que precisa dessa condição para praticar salários miseráveis. Culpar a vítima pelo delito, como se ela pudesse evitá-lo sem mudar a política que a vitimava. Outra política que aumentou a força desses sindicatos foi o tratamento dado pelo governo ao funcionalismo e aos assalariados das estatais. A pressão do governo contra eles os fazia buscar na luta sindical uma saída, embora precária, mas efetiva para cada ocasião. O pilar do PT se fortaleceu no funcionalismo e nos trabalhadores das estatais. A CUT, com seu suporte no ABC, tornou-se a maior central sindical do país, dando uma sustentação política importante para o PT, inclusive para dar-lhe uma imagem de partido popular.

Mas a força política maior do PT, aquela que lhe rendeu mais votos e respeitabilidade, provinha da Igreja Católica, através das Comunidades Eclesiais de Base. Ela deu ao PT um caráter assistencialista e estendeu seu poder à classe média. Deu-lhe também condições objetivas para representar, embora não ostensivamente, o patriciado nacional, na cidade. Nos rincões do interior, ela abriu-lhe o caminho para os deserdados do campo. Ali os autofalantes da Igreja, pregavam a favor do PT e contra Brizola, por exemplo, o que pude constatar no norte de Minas quando da campanha de Brizola à Presidência, em 1989. Consta que o PT foi criado por um entendimento da Igreja Católica, representada pelo arcebispo de São Paulo, Dom Evaristo Arns, assessorado pelo conceituado intelectual Cândido Mendes, com Golbery do Couto e Silva, estrategista político do governo militar e criador do SNI.

Dom Evaristo Arns se notabilizou pela criação das Comunidades Eclesiais de Base, que dava às populações carentes assistência material e espiritual.  Foi um baluarte no combate pelos direitos humanos, e pela defesa dos perseguidos políticos durante a ditadura militar. Teria contribuído decisivamente para o projeto Brasil Nunca Mais, que mostrava as monstruosidades praticadas pela ditadura, para que aquilo não voltasse a ocorrer de no nosso no país. Teve um trabalho social incansável e foi o fundador da Pastoral da Terra. Foi também um dos organizadores do movimento Tortura Nunca Mais. Ele, o cardeal do Rio de Janeiro Dom Eugênio Sales e outras autoridades da Igreja, salvaram milhares de refugiados dos países do Cone Sul, Uruguai, Argentina, Paraguai e Chile, fugindo da prisão e da morte da Operação Condor. Acordo secreto entre esses e o Brasil, para a perseguição dos oposicionistas às ditaduras militares desses países.

Essas informações nos ajudam a compreender o fenômeno do PT, um partido sem ideologia definida, que ganhou enorme representatividade, mas se arrebentou no confronto com a realidade política do projeto de conquista do mundo pelo capital financeiro mundial, comandado da Wall Street, em Nova York, tendo como coadjuvante a  City de Londres, e se envolveu no mais escabroso processo de corrupção que o Brasil conheceu

Rio de Janeiro, 25/12/2016.

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