Os novos barões do café (XX) – Ditadura IV, a verdade vem à tona


Ditadura IV, a verdade vem à tona

 

Arnaldo Mourthé

 

Os casos escabrosos de violência gratuita chegaram à população, através da imprensa, em alguns casos que se tornaram clamorosos. Em 25 de outubro de 1975, Wladimir Herzog, jornalista, professor e dramaturgo, diretor do departamento de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, foi convocado para um depoimento na polícia política. Ele era suspeito de ter relações com o Partido Comunista. No dia seguinte foi encontrado morto, enforcado com sua própria gravata, na cela onde estivera preso. A imprensa analisou os fatos e concluiu que ele fora assassinado, provavelmente durante a tortura a que fora submetido. O fato gerou uma enorme indignação na opinião pública. Em 16 de janeiro de 1976, o operário da empresa Metal Arte de São Paulo, Manoel Fiel Filho, preso por distribuir o jornal Folha Operária, foi morto sob tortura. Defender interesses trabalhistas era risco de vida naquele período negro da nossa história.

A Arquidiocese de São Paulo passou a atuar junto às autoridades governamentais pedindo aplicação das leis de defesa da pessoa, e dando apoio às famílias de prisioneiros e de cidadãos mortos pela repressão governamental. Naquele mesmo ano, Dom Eugênio Sales, arcebispo do Rio de Janeiro e cardeal, começou a receber e dar auxílio a refugiados dos países vizinhos, que procuravam a sobrevivência no Brasil, fugindo da Operação Condor. Ele conseguiu enviar muitos deles para fora do país, na condição de refugiados, com cobertura das Nações Unidas e até do governo dos Estados Unidos. A matéria publicada pelo jornal O Globo, de 2/3/2008, com uma longa entrevista do arcebispo, refere-se a milhares de pessoas atendidas pela Cáritas, pela Comissão Brasileira de Justiça e Paz e pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Eles eram argentinos, chilenos, uruguaios e paraguaios fugitivos de ditaduras em seus países, vitimados por golpes de Estado, na Bolívia em 1964, no Uruguai e no Chile, em 1973, e na Argentina, em 1976. A do Paraguai surgira bem antes, em 1954, iniciando o reinado de 35 anos de Stroessner.

A Operação Condor foi um acordo entre as ditaduras do Cone Sul, com participação do Brasil, para coordenar suas ações repressivas contra seus opositores. Ela mostraria sua face no Brasil em 1978, quando do sequestro de Universindo Rodríguez Díaz, sua esposa Lilian Celiberti e seus dois filhos, em Porto Alegre. A operação foi descoberta por jornalistas da sucursal da revista Veja no Rio Grande do Sul que, ao chegarem ao apartamento do casal para entrevistá-lo, encontraram os dois presos por agentes. As crianças já haviam sido levadas para o Uruguai. O casal ficou preso no Brasil por cinco anos, tendo sofrido torturas na prisão. Há também a grave suspeita de que o ex-presidente João Goulart fora morto por troca de medicamentos pelos serviços secretos argentinos, em 1976. Da mesma forma há suspeição que o “acidente” que matou Juscelino Kubitschek fora provocado, assim como a morte de Carlos Lacerda não fora natural. Esses três homens públicos, apesar das divergências dos dois primeiros com Lacerda, estavam discutindo uma forma de unir forças, a Frente Ampla, para substituir a ditadura por um regime democrático.

A Operação Condor produziu uma grande chacina nos países do Cone Sul, comparável a uma guerra de porte entre nações. Por ordem crescente, foram centenas de mortes no Uruguai e no Brasil, milhares no Paraguai, no Chile e na Argentina. Nesta última, há registros de cerca de 30.000 mortes, muito mais que os números de mortes produzidas pelos terroristas atuais, que serviram de justificativa para longas e dolorosas guerras. Mas para as elites dos países onde se instalaram essas ditaduras, os latino-americanos não contam tanto quanto os europeus ou americanos do norte.

Outro fato clamoroso foi a morte da estilista Zuzu Angel Jones, em 14 de abril de 1976, em “acidente” também provocado, o que foi provado em perícia técnica e reconhecida pela Justiça brasileira. Zuzu era mãe do militante Stuart Angel Jones, preso em 14 de junho de 1971, e dado como desaparecido. Zuzu, mãe zelosa, mulher de princípios, de fibra e corajosa, buscou saber sobre o ocorrido, descobrindo que seu filho fora preso e assassinado pelos serviços de segurança do governo. Ela exigiu o corpo do filho, que os militares negavam conhecer. Estilista de talento e original, Zuzu havia conquistado muitos admiradores nos Estados Unidos, pátria de seu ex-marido, Norman Jones. Entre eles havia personalidades da política e do cinema. Ela tinha a figura de um anjo como símbolo das suas criações. Como sinal de protesto contra a violência do governo militar, seu anjo passou a ser estampado acorrentado e amordaçado. Em um desfile no consulado brasileiro de Nova York, ela usou estamparia com motivos violentos, manchas vermelhas, pássaros engaiolados e guerra. Em uma visita de Henry Kissinger ao Brasil, ela conseguiu furar a segurança e entregar a ele uma carta com informações sobre a morte de seu filho. A reação do regime militar foi mandar matá-la. O corpo de Stuart jamais foi encontrado. A vida de Zuzu foi motivo do filme Zuzu Angel, de Sérgio Rezende, de extraordinária beleza e sensibilidade.

Os horrores da ditadura eram ocultados pela mordaça à imprensa, mas havia formas de comunicação entre pessoas de confiança e organizações civis, que as divulgavam. Os fatos não chegavam a ser conhecidos por grande maioria da população. Mas as pessoas mais esclarecidas sabiam o que ocorria, embora não fizessem alarde delas. Todas temiam as consequências de enfrentar o monstro que ocupava o poder. Mas isso mudou, na medida da maior conscientização das pessoas. A opinião pública internacional, as posições da Igreja Católica, e principalmente o destemor das mães dos prisioneiros e desaparecidos, induziram as pessoas mais destemidas a tomar posição. Famílias de vítimas da ditadura criaram a organização Tortura Nunca Mais, que fez história. Em 1976, um grupo de mulheres de São Paulo, lideradas por Terezinha Zerbini, advogada e mulher do general Euryale de Jesus Zerbini, publicou um manifesto a favor da anistia ampla e geral, que foi distribuído em São Paulo e enviado a pessoas de confiança em outros estados. Logo depois elas registraram em cartório o Movimento Feminino pela Anistia, que floresceu em vários estados. Sua repercussão maior foi no Rio Grande do Sul, onde a corrente republicana era vanguarda no Brasil. Em 1978 o movimento pela anistia alcançava a quase totalidade da sociedade brasileira, invadia a universidade, que se mobilizou, o mesmo ocorrendo com os sindicatos e organizações profissionais. Em fevereiro daquele ano, ele recebeu um grande impulso, a criação do Comitê Brasileiro pela Anistia, fundado por advogados de presos políticos, com apoio da OAB. Mas a reação de setores militares era ainda muito forte, enquanto muitos parlamentares vacilavam entre o poder de pressão da sociedade civil e a força física do governo.

 

Rio de janeiro, 21/12/2016

 

 

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