Um governo das trevas


Um governo das trevas

Arnaldo Mourthé

Ontem assistimos pela televisão, em cena deprimente, a reunião de governadores com a cúpula do governo, com a presença de Temer. Tratava-se da discussão da crise financeira que assola os Estados brasileiros, com destaque para o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul, onde o governador decretou estado de calamidade. Os temas centrais foram a partilha de multas sobre tributos não pagos pelos brasileiros que transferiram lucros para o exterior, e as medidas exigidas pela área econômica do governo para o saneamento dos Estados, que incluem: demissão de funcionários; redução das remunerações em cargos de comissão; bloqueio dos salários do funcionalismo por dois anos; e, o mais polêmico, a reforma da Previdência dos funcionários estaduais, a ser definida pelo governo federal.

Em troca do valor ridículo de pouco mais de cinco bilhões de reais, parte da multa referida acima, anunciou-se um pacto entre o governo federal e os estaduais, que obriga os Estados a tomar as medidas exigidas pelo senhor Meireles, ministro da Fazenda. Mas por que é ridículo o valor mencionado? Porque ele não resolve nenhum problema dos Estados. É apenas um complemento para o pagamento da folha de salários até o fim do ano, enquanto o governo federal despende um bilhão e duzentos milhões de reais por dia para o pagamento dos juros de sua dívida. Sobre isso falaremos mais adiante.

Enquanto os altos mandatários da República discutem se os Estados podem ou não pagar o 13º     salário, o Brasil vive o caos social. Os servidores do Rio e de Porto Alegre estão nas ruas pressionando as assembleias legislativas para que não aprovem as propostas calamitosas dos executivos estaduais. Milhares de pessoas por todo o país fazem enormes filas a busca de um emprego, situação que se repete todos os dias porque os empregos novos não surgem e mais trabalhadores são demitidos. A economia cai, devendo fechar o ano 3.5% menor que no ano passado, quando já havia caído 3%. Dentre as medidas exigidas pelo governo federal está a demissão de funcionários aumentando o desemprego. Mas isso é só um aspecto do problema, que veremos adiante.

As escolas públicas caem em pedaços por falta de verbas, até para a manutenção de suas instalações. Nos Estados os salários atrasam, os professores fazem greve e os alunos ocupam centenas de escolas. Na saúde impera o caos. Por toda parte são filas de dobrar o quarteirão para conseguir uma consulta, que quando são marcadas podem ser para daqui a quatro ou cinco meses. As pessoas morrem na porta dos hospitais por falta de atendimento. Médicos fazem greve ou abandonam seus empregos por falta de salários, em muitos casos com meses de atraso. A bandidagem, alimentada pelo desemprego e pelos desmandos das autoridades, se sentem liberados para praticar as maiores atrocidades. Muitos são bandidos de vocação que já existem há muito tempo, mas há também os novos bandidos, levados ao crime pela necessidade, que inclui a comida para a família. As estradas são o retrato da calamidade, uma ação programada para justificar suas concessões às empresas privadas, mas também por falta de dinheiro para conservá-las. Repare que não falamos das mazelas do subdesenvolvimento que submete nosso povo a condições severas de vida. Esse é um assunto maior que merece considerações mais aprofundadas. Agora vamos aos fatos que provocaram a calamidade atual.

O item primeiro do problema chama-se endividamento público, suas causas e consequências. Nós temos um endividamento que nos foi imposto por uma conjuntura internacional de reciclagem do capitalismo para sua própria sobrevivência por mais algum tempo. Mas a negligência e a corrupção de nossos dirigentes políticos, e de outros responsáveis pela formação da opinião pública, fizeram de nossa crise uma calamidade jamais vista na nossa história e, talvez, na história da humanidade. Esse é um processo complexo que remonta à nossa formação como nação, que nós tratamos em nosso livro História e Colapso da Civilização, e do qual estamos fazendo uma síntese histórica, na série de artigos que estamos divulgando sob a denominação de “Os novos barões do café”. Mas como vem sendo tratado o problema da nossa dívida pública?

Nosso endividamento público foi impulsionado inicialmente pela facilitação de financiamento em dólares dos investimentos públicos e privados, no famoso programa da ditadura militar do “Brasil grande”. Muita farra foi feita buscando o apoio da população à ditadura, com obras faraônicas, e do enriquecimento fácil no setor privado, com dinheiro de fora: os petrodólares e os eurodólares.

Mas, a partir do governo Fernando Henrique Cardoso, esse endividamento externo foi transformado em dívida pública, que parece ser apenas uma dívida interna, mas é mais externa que interna, tendo como principais investidores os grandes bancos internacionais. Na verdade o que Fernando Henrique fez foi monopolizar na União a emissão de títulos, assimilando as dívidas dos Estados, que se tornaram devedores da União. Ele enfraqueceu o sistema federativo, fazendo com que todos os créditos fossem contralados pela União. Preparou assim o terreno para amarrar o Brasil na política neoliberal, subordinando nossa soberania aos interesses do capital financeiro.

Quando ele implantou suas reformas constitucionais houve denúncias de compra de votos de parlamentares, o mesmo que mais tarde aconteceu também com o Mensalão, esse comprovado e punido exemplarmente pelo STF.

A política econômica de FHC teve continuidade no governo Lula. Quando este ganhou as eleições havia uma expectativa de mudança da política econômica, o que não aconteceu. Antes mesmo de tomar posse Lula foi fazer uma visita diplomática a Jorge W. Bush. Quando saiu da audiência na Casa Branca, Lula, ainda na varanda do palácio, anunciou  o nome de Henrique Meireles como presidente do Banco Central do Brasil. Talvez muitos não percebessem, mas estava ali sacramentado um acordo com Bush. Mas quem é Henrique Meireles?

Nascido em Anápolis, Goiás, em 1945, Meireles fez política estudantil no colégio de sua cidade. Ele pertence a uma família de políticos daquele Estado. Foi para São Paulo, onde se formou em engenharia na USP, em 1972. Depois fez pós-graduação em administração na UFRJ. Naquele mesmo ano foi trabalhar no BankBoston – do qual assumiu o cargo de presidente mundial, em 1996 – e lá permaneceu até 1999. Exerceu várias funções dentro do banco e fez cursos de aperfeiçoamento, sendo um deles na Harvard Business School. De 1999 a 2002 ele exerceu a presidência do FleetBoston Financial.

Naquele ano ele retorna ao Brasil e foi eleito deputado federal pelo PSDB de Goiás. Até então ele havia trabalhado para o BankBoston, sem jamais ter exercido um cargo público. Apesar de ser filiado a partido adversário de PT de Lula, ele foi o presidente do Banco Central do Brasil, encarregado da política financeira do governo. Portanto, o responsável pela política que nos levou ao caos financeiro. Por que?

Lula havia aderido à política neoliberal de FHC, e colocou no Banco Central um homem indubitavelmente competente. Mas para que? Para defender os interesses do capital financeiro internacional. É isso que ele sabe fazer, e o faz muito bem. Foi esse Meireles que nós vimos na televisão prescrevendo aos governadores a receita para resolver a crise financeira dos Estados, a custa dos servidores e dos serviços públicos.

Estamos assistindo à tentativa dos banqueiros internacionais de transformar o Brasil em uma nova colônia. Essa tentativa é comandada por Meireles sob o auspício de Michel Temer. Eles estão armando para pagar os juros da dívida com a alienação do patrimônio nacional que, em grande parte, já está alienado, especialmente no setor industrial. O caminho para contornar a crise econômica, que é mundial, começa com a solução da crise financeira que é brasileira e pública. Para isso é preciso utilizar os 45% do orçamento, destinado ao pagamento dos juros da dívida pública, para sanear as finanças da União, dos estados e dos municípios. Para isso é preciso suspender o pagamento dos juros e auditar a dívida pública para saber o quanto de ilegalidade e ilegitimidade ela contém. Poderá Meireles, que levou o Estado brasileiro ao caos financeiro fazer isso?

Há que fazer algo para conter esse plano perverso que só pode ser executado por um GOVERNO DAS TREVAS. É urgente que nosso povo ou, pelo menos, seus líderes mais representativos tomem consciência do que está acontecendo. Recomendo o acesso pela internet ao documentário: Dívida pública – a soberania na corda bamba. Mas é preciso fazer muito mais que isso. Nosso futuro e, mais que isso, o futuro de nossos filhos, netos e os que virão depois está em grave risco. Pensemos nisso!

Rio de Janeiro, 24/11/2016

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