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Uma nova sociedade emerge no Brasil
Arnaldo Mourthé
Com o fim da escravatura, o Brasil ingressava de fato no sistema capitalista de produção, com o trabalho assalariado. As ideias políticas que floresciam na Europa já influenciavam nossas elites intelectuais desde a Inconfidência Mineira. Antes da industrialização, entretanto, não havia no país nenhuma corrente política preocupada com os anseios dos trabalhadores. Houve fortes movimentos políticos que questionavam nossa sociedade elitista, mas todos limitados aos interesses de proprietários, comerciantes, profissionais liberais e funcionários. Esses se manifestaram na Guerra dos Farrapos, cujos dirigentes eram republicanos e contra a escravidão, no movimento abolicionista e na proclamação da República. Esta foi conduzida por militares positivistas e pelos maçons. A política era assunto de uma elite. Para a grande massa de trabalhadores, da cidade ou do campo, ela não era considerada. Isso mudou com a industrialização e a urbanização consequente.
A mudança se deu na virada do século, motivada por dois fatores fundamentais, a industrialização e a abolição da escravatura. Inicialmente os trabalhadores da indústria se organizaram em sociedades de ajuda mútua e nas Uniões Operárias. Mas, em 1906 eles criaram no Rio de Janeiro a Confederação Operária Brasileira, que foi a precursora do movimento sindical. Com a migração de muitos trabalhadores europeus, o movimento sindical ganhou força, impulsionado pelas ideias socialistas e anarquistas que eles trouxeram consigo. Eles vieram ocupar postos na indústria nascente, e atender às necessidades dos cafeicultores com o fim da escravidão e a expansão das lavouras. A primeira grande expressão dessa força social ocorreu na Greve Geral de 1917, em São Paulo que repercutiu especialmente no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul.
A Primeira Guerra Mundial que começou em 1914 desorganizou a economia europeia gerando a falta de alimentos. O Brasil foi uma das opções dos países europeus para a compra de alimentos. Cresceu a exportação de alimentos, que faltaram na mesa dos brasileiros. Seus preços subiram. Os trabalhadores urbanos, que ganhavam pouco, já não tinham condições de alimentar a si e às suas famílias. Eles reivindicaram maiores salários e não foram atendidos. Estourou a primeira greve na indústria têxtil, que então era a principal atividade industrial do país. A greve se espalhou e ganhou toda a cidade de São Paulo, com a mobilização da população que vivia o mesmo problema. Foram organizados comitês de bairros. O movimento tomou o controle da cidade de São Paulo. O governo abandonou a cidade que durante três dias ficou sobre o controle do Comitê de Defesa Proletária. Um conjunto de reivindicações foi acrescentado à de aumento salarial. Entre elas a jornada de trabalho de oito horas e a proibição do trabalho infantil. O governo aceitou negociar e a greve foi encerrada mediante concessões dele e dos empregadores.
Mas os problemas da sociedade eram muito maiores que simples ajustes salariais. Havia um poder político da casta dos barões do café, que se mantinha graças à injustiça social e a eleições fraudulentas. Não havia votação em urna. Os votos eram escriturados por um mesário que era indicado pelo chefe político local. O resultado era sempre o que a esse interessava. O analfabeto não votava, e a grande maioria da população era analfabeta. As mulheres também não. Elas só adquiriram esse direito em 1932, com a Revolução de 30. A política dos donos do poder era voltada para seus próprios interesses e os de seus auxiliares, sócios comerciais e banqueiros. Seu grande trunfo era ter o produto que, exportado, fornecia ao país a maior quantidade de moeda estrangeira. Seus sócios privilegiados eram os exportadores e seus parceiros de fora do país, e ainda os bancos que lhes forneciam os créditos. Todo o controle desse sistema estava na mão do importador estrangeiro e seus bancos. Assim o país era contido no seu desenvolvimento, social e econômico, por interesses externos.
A partir da Greve Geral de 1917, muitos movimentos ocorreram no país, abrangendo amplos setores sociais, entre os quais não faltaram os agricultores não cafeicultores, os pecuaristas, os industriais e os comerciantes. Mas um grande papel coube à classe média formada por intelectuais de diversas áreas, funcionários e profissionais liberais, que se somaram ao recente movimento sindical emergido da Greve Geral de 1917, já emancipado da liderança anarquista, quanto se manifestaram outras correntes, como os socialistas, os comunistas e os trabalhistas.
É sintomático que em 1922 os intelectuais brasileiros tenham realizado a Semana da Arte Moderna em São Paulo, ali no principal centro de poder dos barões do café. Esse evento foi um monumental protesto cultural contra as amarras sociais impostas aos brasileiros por esta casta política retrógrada. Na mesma época, ocorreram muitos movimentos que evidenciavam grandes contradições na sociedade brasileira, que vivia sobre uma pressão social discriminatória e repressiva, que impediam o desenvolvimento socioeconômico do país. Nos anos 20 ocorreram revoltas militares, dentre as quais destacamos Os Dezoito do Forte, em Copacabana, e a Coluna Prestes que percorreu milhares de quilômetros no interior do Brasil, com suas reivindicações também libertárias. O Brasil preparava-se para uma grande virada de modernização e da busca da justiça social. Isso era o que indicava a resultante das manifestações de amplos movimentos sociais. Muito mais coisas poderiam ser ditas sobre isso, mas não cabem em pequenos artigos como os desta série que estamos fazendo.
Todo esse processo teve influência decisiva do que ocorreu na Europa no período pós-guerra. Ainda durante a guerra que produziu nove milhões de mortos, 700 mil só nas trincheiras, que separaram os contendores durante meses. Entre mortos e feridos, civis e militares, o total chegou a cerca de 30 milhões. A Europa vivia uma grande tragédia. Houve enormes greves na França, Alemanha e Itália, contra a guerra e o desabastecimento. A população havia compreendido que aquele desastre humano não tinha a ver com os interesses das nações envolvidas. Ele era apenas de interesse dos capitalistas na sua luta por mercados e domínios coloniais. No pós-guerra a população exigiu direitos que, em parte, foram atendidos pelos governos. Na Inglaterra, já sob o governo trabalhista, o sufrágio universal foi conquistado, aos 21 anos para os homens e 30 anos para as mulheres. Na Rússia ocorreu a Revolução de Outubro, que levou o partido comunista bolchevique ao poder.
O poder político dos barões do café não era limitado a seu domínio econômico e às suas alianças internacionais, feitas em função do comércio, que prosperava sobre a espoliação nacional. Nossa industrialização era bloqueada, por não interessar aos que exportavam para o Brasil produtos industrializados. O poder político era sustentado, sobretudo, pela fraude eleitoral na eleição conhecida como “do pico de pena”, ou seja, escriturada. Não havia cédulas de votação. O voto era pronunciado pelo eleitor junto ao mesário que o anotava em uma folha de papel. A votação era simbólica. Valiam os acordos entre as grandes chefias, os barões do café e seus prepostos, e alguns advogados para referendar a “legalidade” do ato.
Em 1930, em decorrência da crise econômica de 1929 nos Estados Unidos, houve uma redução brutal do mercado internacional do café, e o baronato entrou em crise. A maior repercussão dela fora em São Paulo, maior centro produtor de café. O presidente em exercício Washington Luiz era paulista. Seria, portanto, a vez de um mineiro na presidência. Os paulistas não concordaram. Lançaram seu candidato, Júlio Prestes, governador de São Paulo. Pelo acordo a vaga deveria ser preenchida pelo governador de Minas, Antonio Carlos. Preterido, este apoia Getúlio Vargas, que concorre com Júlio Prestes e perde a eleição que foi fraudada. Explode a Revolução de 30.
Rio de Janeiro, 05/11/2016
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